UMA CONTRIBUIÇÃO À PSICANÁLISE DA CIRCUNCISÃO [1]
Estou aqui diante do
auditório e do Dr. Tractenberg como um clínico geral diante de um especialista;
um especialista que já revelou seu profundo conhecimento sobre circuncisão com
uma obra portentosa, rica em detalhes e conclusões. O que poderia eu
acrescentar ao tema, tão exaustiva e brilhantemente esquadrinhado pelo meu
colega? Creio que a minha reflexão pessoal sobre o tema, reflexão esta
enriquecida de leituras e que se traduz em uma postura metodológica. Tivemos,
Dr. Tractenberg e eu, trajetórias profissionais e teóricas diferentes; em certa
época estas trajetórias chegaram a ser consideradas absolutamente divergentes,
sem encontro possível. De poucos anos para cá, felizmente, vem ocorrendo uma
convergência da qual o meu encontro com Tractenberg é uma prova eloqüente.
A abordagem que farei da
circuncisão será pela via do sentido, do significado, seria melhor dizer, do
significante. Disciplinas tão afastadas como a neurofisiologia e a fisiologia
reconhecem duas abordagens possíveis (que se completam) da obra de Freud. No
livro “Freud’s ‘Project’ Re-assessed”[2],
Karl Pribram e Merton Gill expõem a partir da neurofisiologia, dois enfoques: o
enfoque energético (mecanismo de feedback onde são aplicáveis conceitos
energéticos tais como carga, etc.) e o enforque da informática (organizações
feedforward, programas de comunicação). Os pontos de vista energético e
informático que o estudo a partir da neurofisiologia encontra, aproxima-se
surpreendentemente do estudo filosófico que Paul Ricoeur[3]
realiza, encontrando também duas abordagens: a energética e a hermenêutica.
Pág. 61 “...alternadamente, a psicanálise se nos apresentará como uma
explicação dos fenômenos psíquicos por conflitos de força, portanto, como uma
energética – e como uma exegese do sentido latente, portanto como uma
hermenêutica”. Tanto Pribram e Gill quanto Paul Ricoeur procuram integrar essas
duas abordagens em uma unidade. Pribram e Gill – pag.28 “Nós, portanto,
propomos interpretar uma das mais importantes e básicas distinções da
metapsicologia psicanalítica – a separação do processo primário e secundário –
em parte em termos de ajuste de carga ou processamento de erro versus processos
de programação ou informação”. Paul Ricoeur – pag.61 “A unidade dessas duas
maneiras de compreender será o desafio dessa primeira parte”. Como já deixei
anteriormente explícito, minha abordagem do problema da circuncisão será pela
via do sentido, do significante.
Evidentemente,
o privilegiamento do sentido, a desmaterialização dos fatos e dos traumas não é
nenhuma novidade em psicanálise. Américo Vallejo em seu livro “Topologia de J.
Lacan – del Narcisismo” escreve (pág. 112)[4].
“Vimos anteriormente que o corpo é tampouco para a teoria este corpo-coisa que
podemos tocar mas sim o que antecipou nossa completude desde ‘lá’, desde o
lugar do outro; portanto, não poderá menos que ser um corpo imaginário
assinalado pelo outro desde o simbólico”. E mais adiante (pág. 113): “As zonas
erógenas não são necessariamente os lugares anatômicos específicos do corpo
humano, mas também aqueles onde o desejo do outro assinalou os lugares do
gozo”. E acrescento eu: - os lugares da repressão – sendo que o lugar do gozo e
da repressão podem estar no mesmo “lócus” – no caso presente, no pênis, ou
melhor no falo, ou, melhor ainda, no significante primordial falo. É a
repressão, e basicamente a repressão primária, que libera o homem para as
possibilidades de gozo da existência. O gozo fora do contexto da repressão é
auto-destrutivo como o atestam os destinos de Édipo, dos toxicômanos, de
Narciso, dos psicóticos, dos personagens do ‘Império dos Sentidos’, da
‘Comilança’, etc. Evidentemente esta repressão é uma violência necessária para
a própria constituição do ser humano. Piera Aulagnier em seu livro “A violência
da interpretação”[5]
distingue uma violência primária de uma violência secundária.(pág.36)
“...propomos separar uma violência
primária, que designa o que, no campo psíquico se impõe do exterior ao
preço de uma primeira violação de um espaço e de uma atividade que obedece a
leis heterogêneas ao Eu e ao discurso; e uma violência secundária, que abre seu caminho apoiando-se na violência
primária da qual ela representa um excesso, excesso quase sempre nocivo e
desnecessário ao funcionamento do eu, apesar de sua freqüência. No primeiro
caso, trata-se de uma ação necessária
cujo agente é o Eu de um outro, tributo que a atividade psíquica paga para
preparar o acesso a um modo de organização que se fará em detrimento do prazer
e em benefício da construção futura da instância chamada Eu”. Evidentemente
violência primária não significa violência física, mas a imposição de um
sistema de valores que terminará por romper a simbiose com a mãe introduzindo a
criança na ordem da Lei, da Cultura, do Simbólico. Veremos mais adiante que a
circuncisão, embora violência física, situa-se, por seu papel estruturante, no
âmbito da violência primária.
Diz-nos Lacan em seu artigo
“As formações do inconsciente”[6](pág.106).
“A castração não é real, está ligada a um desejo...” “...o que quer dizer que,
para que o desejo atravesse com felicidade certas frases, o falo deve ser
marcado por isto: somente é mantido, conservado, se atravessou a ameaça de
castração. É nessa relação do desejo com a marca que se deve
buscar o essencial da castração mais do que nos seus efeitos. (sublinhamento
meu). Voltaremos a encontrar esta marca nos ritos de circuncisão, de
puberdade, de tatuagem: cada acesso do sujeito a um certo nível do desejo fica
marcado”. Em “La família”[7](pág.100)
Lacan escreve: “Essa gênese da repressão sexual tem, sem duvida, referências
sociológicas: exprime-se por ritos através dos quais os primitivos manifestam
que esta repressão se imbrica com as raízes do vínculo social: ritos de festas
que, para liberar a sexualidade designam nela mediante sua forma orgiástica o
momento da reintegração afetiva no Todo; ritos de circuncisão que, ao sancionar
a maturidade sexual, manifestam que a pessoa acede a ela somente a custa de uma
mutilação corporal”. Reintegração no Todo é o mesmo que integração no corpo da
Mãe, volta à simbiose; mutilação corporal significa que a unidade mãe-filho
ficou desfeita para que a criança passe a ocupar o seu lugar adulto na
sociedade. Os ritos Wasamba de circuncisão[8]
podem, dentro de sua multideterminação, ser interpretados dentro dessa
perspectiva. Simbolizam o perdido e o adquirido. O que foi perdido? a simbiose
com a mãe; a infância ‘despreocupada’ (melhor seria dizer, com outro tipo de
preocupação). Esta perda está simbolizada pelo luto por ocasião da circuncisão,
(tribo Sabanga do Ubungui – pág.53);[9]
pelo gesto ritual de atirar o prepúcio cortado no rio (idem); pela entrega das
roupas femininas que o jovem usava (tribo Malinka pág 62)[10]
O que foi adquirido? Um lugar na sociedade; um nome; inserção no mundo adulto;
uma voz ativa; direitos e deveres. O jovem não mais conta com a proteção
materna sancionada pela lei da tribo; agora ele pertence à ordem da Lei e dela
deve cuidar. Esta situação é simbolizada pela entrega da indumentária feminina
e a aquisição da indumentária masculina (tribo Malinka pág.62).[11]
Nesta mesma tribo Malinka canta-se uma canção triste alegremente (pág. 59).[12]
Tristeza e luto em referência à separação da mãe e alegria em referência à
entrada do mundo dos adultos. A aceitação da dor da separação se exprime na dor
da circuncisão.
Uma cultura em que fica muito clara a relação entre
circuncisão e lei é a cultura judaica. Antes de tudo sejamos acacianos: a
circuncisão não é uma castração real. Ela não impede ao ser humano de procriar,
gozar, copular, crescer, criar, etc. Mas, o que poderia ser esta castração
simbólica? Voltemos por alguns momentos a Lacan. No seu trabalho ‘As formações
do inconsciente’[13],
(pág. 106) escreve: “Psicologizou-se o complexo de castração ao rastreá-lo cada
vez mais longinquamente na gênese do temor: temor do pai, temor narcisista
(dano à integridade corporal), temor do órgão feminino – seja como modelo da
desapropriação do pênis, seja como ameaça – e por último, temor do próprio
falo, oculto no fundo do órgão materno, imagem da arma primordial do menino em
sua agressão contra a mãe. (Melanie Klein). Assim se chega a isolar o complexo
de castração, a reduzi-lo a uma pulsão agressiva primordial. Porém, em tendo o
complexo de castração esse caráter essencial que Freud e a experiência
analítica reconheceram, é preciso então concebê-lo de outro modo. A castração
não é real e está ligada a um desejo...”. Todas estas perdas materiais que se
designam por castração, podem ser recobertas pelo significante primordial falo,
desde que adotemos uma nova concepção. Nesta nova perspectiva não se considera
a materialidade do evento, mas sim o contexto intersubjetivo em que se produz.
Vale a pena aqui citar Bion que também alude à desmaterialização dos eventos.
No seu artigo ‘Ataques ao vínculo’ (pág. 139-140, de “Volviendo a
pensar” )[14]
escreve: “O conceito de objetos parciais como análogo a uma estrutura
anatômica, que se vê favorecido pelo fato do paciente utilizar imagens
concretas como unidades de pensamento, é enganoso, porque a relação de objeto
parcial não se estabelece com as estruturas anatômicas mas com a função, não
com a anatomia mas com a fisiologia, não com o peito mas com a alimentação, o
envenenar, o amar, o odiar”. Acrescento: com o vínculo intersubjetivo. A ameaça
ao falo, a ameaça à perda da completude tem então a ver com o desejo do Outro,
está marcado pelo Simbólico, pela cultura. O significante falo torna-se o ponto
de partida de uma cadeia de significantes que o substituem e a ele remetem.
Ficam aí representados o nascimento, o desmame, a separação edípica, tudo em
nome do desejo do Outro, desejo que marca o corpo e a alma do ser em
desenvolvimento.
A ambivalência, pela via da demanda, tem a ver com
o desejo; isto porque a oposição presença/ausência nos remete à dualidade
completude/incompletude, que por sua vez nos remete à situação de ambivalência.
Tanto se quer o nascimento quanto conservar a benaventurança da gravidez; tanto
se quer o desmame quanto continuar usufruindo dos prazeres amorosos da
amamentação; tanto se quer o crescimento e independência do filho quanto
mantê-lo ligado e dependente.
Todas estas oposições integradas podem ser
representadas pela oposição básica presença/ausência. É a tensão vital que daí
resulta que suporta o desejo. Desejo, pois é o querer algo que estamos
destinados a perder, e que estamos continuamente perdendo.
Se pegarmos esta frase e a
imobilizarmos, assim como se dela tivéssemos tirado uma fotografia, e se
pegarmos esta fotografia assim imobilizada e a transplantarmos para a alma
humana, teremos nos aproximado da compreensão da estrutura mais íntima do
desejo. Isto sem perder a perspectiva de que estamos lidando com um constructo.
Se vocês me perdoarem a excentricidade das comparações, direi que o desejo é o
motor que mais se aproxima do moto-contínuo, é um cachorro perseguindo o
próprio rabo, é uma bateria que se auto-renova até o momento da morte. Então
estamos sempre reconstruindo o falo ao qual continuamente atacamos. Esta
situação estrutural fica fotograficamente imobilizada e claramente expressa
pela circuncisão: lá está a marca do eterno ataque ao falo onipotente, que, no entanto, ao mesmo tempo, se mantém íntegro e potente na sua eterna busca de uma
completude.
Porém, a circuncisão na
cultura judaica não é apenas a simbolização do desejo. Ou melhor, é a
simbolização do desejo na medida em que o desejo está ligado à Lei, neste caso,
à Lei outorgada por Deus. Vale a pena irmos até a Bíblia. Gênesis 17,9: “e
disse Deus a Abraão...10 – eis aqui o pacto que eu faço contigo, para que tu o
observes e a tua posteridade depois de ti. Todos os machos dentre vós serão
circuncidados. 11 – E vós circundareis a carne do vosso prepúcio, para que essa
circuncisão seja o sinal do concerto, que há entre mim, e vós.12 – O menino de
8 dias será circuncidado entre vós...13 – E esta marca do meu pacto será na
vossa carne como um sinal duma eterna aliança. 14 – Todo macho cuja carne não
for circuncidada será aquela alma exterminada do seu povo porque violou o meu
pacto”. Aqui estabelece-se uma correlação entre corpo e alma, que lembra a
visão psico-somática do homem. Esta é a interpretação que encontramos no “Sefer
há-Zohar” livro escrito por sábios judeus no século II. Lá está escrito que o
homem “é marcado com o santo selo de Javé... a alma (neshamá) é ligada à
circuncisão” (pág. 40).[15]
Maimônedes, filósofo judeu do século XII escreveu: “Assim, qualquer um que é
circundado entra para a aliança de Abraão para acreditar na Unidade de Deus, de
acordo com a Lei... Esta lei só pode ser mantida e perpetuada em sua perfeição
se a circuncisão é realizada...” (pág. 40).[16]
O mohel no momento da circuncisão recita a seguinte prece: “Abençoado seja o
Senhor, nosso Deus, que nos santificou com seus mandamentos e nos outorgou a
circuncisão”. No Deuteronômio 10, 16 lê-se: “Circuncidai pois o prepúcio do
vosso coração e não endureçais mais a vossa cerviz”.[17]
Monsenhor José Alberto de Castro Pinto assim comenta este versículo:
“Circuncidai, etc.: expressão metafórica para dizer: consagrai vosso coração a
Deus, cortando dele todas as paixões e afetos desregrados. Endurecer a cerviz, i.e., afastar-se de Deus por
desobediência a Sua Lei”. ( pág. 138).[18]
No seu trabalho “A circuncisão e a formação de um povo”, Marcos Margulies
comenta: (pág. 42)[19]
“Assim o coração não circuncidado – ou seja, encoberto pelo prepúcio simbólico
– é o coração que ao invés de ser aberto ao comando de Deus e obediente a ele é
obstinado e fechado”. Circuncisão portanto é um ato de submissão amorosa.
Submissão não ao semelhante – ao outro - , mas à Lei personificada por um Deus
Ùnico, Intangível – ao Outro. “O inconsciente é o discurso do Outro”, diz-nos
Lacan. A lei está gravada no Inconsciente do Povo por ordem do Deus-Pai assim
como a circuncisão grava o corpo. Ambas são indeléveis. Alma e corpo formam uma
unidade. A lei fica gravada no ser íntimo da criança antes que ela possa
julgá-la. É a violência primária à qual já me referi. A Lei de Deus, o mandato
cultural antecede todo e qualquer julgamento e deve ficar inscrita de forma
eterna, absoluta, incontestável. É neste ponto que podemos introduzir o Nome do
Pai, a Metáfora Paterna de Lacan (pág. 85 de “As formações do Inconsciente”).[20]
“Tudo isto nos estimula a reconsiderar a função do pai que está no centro da
questão do Édipo. A análise do Presidente Schreber nos ensinou que para a
constituição do sujeito é essencial ter adquirido o nome-do-pai: mas além do
outro é necessário que exista o que dá fundamento à lei. Se há Verwerfung
(forclusão) do Nome-do-Pai, como no caso Schreber, os dois enlaces de ida e
volta da mensagem ao código são destruídos “. Lacan distingue três tempos na
resolução do Édipo. Citando: “Neste primeiro tempo o menino trata de
identificar-se com o que é o objeto de desejo da mãe”. É claro que fala-se aqui
de uma relação simbiótica entre mãe e filho. Voltando a Lacan: “Segundo tempo:
o pai intervém efetivamente como privador da mãe em um duplo sentido: priva o
menino do objeto de seu desejo e priva a mãe do objeto fálico. Aqui há uma
substituição da demanda do sujeito: ao dirijir-se ao outro encontra o Outro do
outro, a sua lei (pág. 86-87)[21].
“Ao procurar a mãe esta lhe indica a Lei, a dolorosa lei que o priva dela e que
a priva dele”.
A circuncisão é a expressão
da vontade de um povo de que os seus filhos respeitem a lei e a imposição
precoce desta vontade aos seus membros (a circuncisão ritual dos judeus é feita
quando a criança tem 8 dias de nascida); em sua sabedoria intuitiva, os antigos
pressentiam que o respeito à Lei depende de uma separação adequada da Mãe. Esta
separação é uma castração. Não uma castração real, mas uma castração simbólica
(no melhor dos casos). A castração simboliza a separação do corpo da criança do
corpo da Mãe (rompimento da simbiose) e a concomitante aceitação da Lei.
Simboliza ainda a proscrição da mãe e a prescrição isogâmica. Estes aspectos
encontramos tanto no ritual Wasamba (lembremo-nos: o jovem entrega a roupa
feminina e passa a usar roupas masculinas – tribo Malinka, pág. 62),[22]
quanto na circuncisão do povo judeu. Evidentemente, na cultura judaica o efeito
da circuncisão só pode ser “nachtraglich”, isto é, a posteriori. Mas isto
veremos mais adiante. Uma pergunta agora se impõe: Porque a castração teve de
ser simbolizada cruentamente ? Prefiro anteceder esta pergunta de uma outra. É
necessário algum sacrifício, alguma dor para pertencer a Lei ? Evidentemente a
dificuldade de ligar-se uma Lei era maior em épocas passadas, como veremos
daqui a pouco. Porém renunciar a uma satisfação completa e irrestrita é sempre
uma dificuldade. É difícil suportar a falta, a ausência. Difícil incorporar a
dor como um aspecto da existência. Requer um aprendizado. Aceitar a lei é
aceitar a dor da separação. Voltando a pergunta que me levou a esta digressão:
Por quê a circuncisão ? A entrada na Ordem da Lei não poderia ser simbolizada
de uma forma não cruenta como por exemplo o fazem os cristãos com o batismo ?
Deixarei de lado os argumentos higiênicos que não me convencem. Prefiro,
novamente, recorrer Lacan. No seu livro ‘La família’ pág. 108[23]
escreve: “Segundo esta referencia sociológica, o fato do profetismo, ao qual,
historicamente, Bergson se referiu, na medida em que se produziu eminentemente
no povo judeu, compreende-se pela situação de eleitos na qual se colocou este
povo, como partidários do patriarcado entre grupos entregues a culturas
maternas, através de sua luta convulsiva por manter o ideal patriarcal contra a
sedução irresistível destas culturas”. A cultura judaica surgiu entre culturas
eminentemente matriarcais. Havia que lutar contra dois grandes inimigos: o
desejo íntimo de voltar à velha cultura da qual o povo estava ainda muito
próximo no tempo (bezerro de outro) e a influência das tribos vizinhas. Um ato
forte, marcante, irrecusável, definitivo pode ter tido a função de, pelo
exagero mesmo, reprimir o desejo de retorno à Mãe. É sabido que, ao evoluirmos
internamente de um modo de ser para outro, necessitamos muitas vezes exagerar o
novo a fim de evitar o retorno do antigo: isto nos permite fixar a aquisição
recente. É possível também que naqueles tempos remotos a atuação concreta e o
simbólico gravado no corpo tivessem um valor maior que na atualidade. Séculos
de civilização judaico-cristã promoveram grandes transformações neste nosso
mundo, especialmente no que se refere à conquista tecnológica da natureza.
Porém, é fora de dúvida que alguma coisa também ocorreu no Homem na medida em
que se sedimentaram conquistas filosóficas e sociais de nossos antepassados e
se abriram novos campos de reflexão. Os rituais cruentos de nossos antecessores
tendem a desaparecer. Nossa reflexão permite-nos entender o simbolismo destes
rituais e assim podemos considerar a possibilidade de prescindir deles. Deus
exigia a submissão do povo judeu, até o extremo de ordenar a Abraão que
sacrificasse seu derradeiro filho. Nos tempos bíblicos teria sido necessária
esta submissão a Deus. Só um Pai poderoso, onipotente e impiedoso poderia
combater a Mãe poderosa, onipotente e sedutora. Havia que submeter-se a uma Lei
dura e imparcial.
A socialização necessitaria,
ainda hoje, de atos violentos? Não seria possível, uma vez reduzido o temor de
não poder educar a criança dentro do respeito à lei diminuir a pressão social
no sentido de empregar com exagero, métodos dolorosos e métodos repressivos? A
oposição entre natureza e cultura afirmada por Lévi-Strauss (As estruturas
elementares do parentesco – pág. 41)[24]
como tendo um (citando) “valor lógico que justifica plenamente sua utilização
pela sociologia moderna, como instrumento de método”, e até certo ponto,
retomada pela teoria lacaniana (natureza-cultura-sociedade) pode, se usada
inconvenientemente por especialistas que labutam no campo da infância,
alimentar arraigados preconceitos. Isto porque, se mantivermos uma oposição
radical, será difícil escapar da idéia de uma educação que inclua o sacrifício,
o esforço sobre-humano, a extrema exigência, a auto-flagelação. Por isso mesmo
teremos de questionar esta oposição. A partir deste questionamento teríamos de
estabelecer para o nosso campo de atividade, uma outra conceituação das
relações entre natureza, cultura e sociedade, uma conceituação que facilitasse
uma mudança de atitude em relação à educação. Não seria mais preciso “impor”
(ex.: circuncisão) a cultura. Poder-se-ia ‘oferecê-la’ à criança na esperança
de que queira aceitá-la. E esta não é uma esperança vã; no seu desejo de
identificação com o adulto ela apreende a cultura que a cerca, inclusive a
língua. A criança quer (ambivalentemente) se incluir na cultura. Não sendo
preciso impor a circuncisão, símbolo de submissão a uma vontade superior que
ordena, esta poderá ser substituída (ou até não) por alguma outra coisa que
simbolize os esforços educativos não-ansiosos, os esforços carinhosos de um ser
adulto no sentido de socializar a criança. Ao invés do autoritarismo dos pais
teríamos uma apresentação da cultura que seria assimilada mais pela via de
identificação egóica e menos pela supergóica. Ao invés dos pais se sentirem
exigidos a realizar uma tarefa quase impossível (impor a cultura a um selvagem
irremediável) poderão oferecer ternamente esta cultura a seus filhos.
Chegamos finalmente à
clínica. A justificativa teórica de minha posição. tomou-me muito tempo e não
poderei me estender muito. Infelizmente, porém, terei ainda de transcrever o
conceito de “nachtraglich” (posterioridade) de Freud, tal qual Pontalis e
Laplanche[25] o
concebem. Posterioridade, (nachtraglichkeit) posterior, posteriormente
(nachtraglich) são “termos freqüentemente utilizados por Freud em relação com a
sua concepção da temporalidade e da causalidade psíquica: há experiências,
impressões, traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de
experiências novas, do acesso a outro grau de desenvolvimento. Pode então
ser-lhes conferida uma eficácia psíquica” (pág.441). A circuncisão é a
expressão da vontade de uma cultura. Na medida em que a criança amadurece e tem
novas experiências, vai tomando consciência da circuncisão e remodelando o seu
significado. Esta remodelação é um processo individual e depende do contexto
social e das vicissitudes da história individual. Poderá chegar a significar um
impedimento ao gozo e ao desenvolvimento; ou poderá significar uma marca que
insere a pessoa em uma cultura: ou poderá significar qualquer outra coisa. É de
se presumir que, quando uma cultura ou uma unidade cultural está atravessando
uma fase de relativa estabilidade, o significado que seus membros darão às
marcas da cultura tenderá a coincidir com a Lei; e, em não havendo um
questionamento mais sério, as eventuais remodelações não terão um caráter
revolucionário. O contrário, evidentemente, ocorrerá em época de crise de uma
cultura ou unidade cultural.
Em resumo: é na situação
intersubjetiva que se revelam os simbolismos. Uma atitude descompromissada, nos
facilitará apreender a cadeia de significantes relativa às produções do
cliente. Uma abertura do terapeuta aos vários significados possíveis da
circuncisão facilitará o incremento de uma corrente comunicativa em nível
transferencial-contratransferencial, permitindo ao cliente reorganizar e
ampliar o seu mundo psíquico.
Nahman
Armony
[1] Palestra realizada no dia
10/01/81 dentro do tema “A Circuncisão e suas conseqüências
Médico-Psicológicas”na 3 a Jornada de Terapêutica Médico-Psicológica
da Criança, promovida pela APPIA.
[2] PRIBRAM, K. B. E GILL M.M (1976) – “Freud’s Project Re-Assessed” Basic
Books, Inc. Publishers, New York, U.S.A.
[3] RICOEUR, Paul (1965) – “Da
interpretação :ensaio sobre Freud” – Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro, Brasil
1977
[4] VALLEJO, AMÉRICO (1979) – “Topologia de J. Lacan – Del Narcisismo”. – Helguero Editores, El Salvador 5588
[5] AULAGNIER, Piera (1975) –
“A violência da interpretação”, Imago Editora Ltda, Rio de janeiro, Brasil,
1979.
[6] LACAN, J. (1958) – “Las formaciones del inconsciente”. Ediciones
Nueva Vision, Buenos Aires, Argentina,
1970.
[7] LACAN, J. – “La Família” –
Ediciones Homo Sapiens, Argentina 1977
[8] TRACTENBERG, M. (1977) –
“Psicanálise da circuncisão” – Editora Civilização Brasileira S.A. – Rio de
janeiro
[9] TRACTENBERG, M. (1977) –
“Psicanálise da circuncisão” – Editora Civilização Brasileira S.A. – Rio de
janeiro
[10] TRACTENBERG, M. (1977) –
“Psicanálise da circuncisão” – Editora Civilização Brasileira S.A. – Rio de
janeiro
[11] TRACTEMBERG, M. (1977) – “Psicanálise da circuncisão” – Editora
Civilização Brasileira S.A. – Rio de Janeiro
[12] TRACTEMBERG, M. (1977) – “Psicanálise da circuncisão” – Editora
Civilização Brasileira S.A. – Rio de Janeiro
[13] LACAN, J. (1958) – “Las formaciones del inconsciente”. Ediciones
Nueva Vision, Buenos Aires, Argentina,
1970.
[14] BION, W.R. (1959) – “Volvendo a pensar” – Editorial paidos,
Buenos Aires, 1977, 2ª edição.
[15] Citado por MARCOS MARGULIES
em seu ensaio “A circuncisão e a formação de um povo” in “A circuncisão – o
mito e o rito”. Editora Documentário, Rio de janeiro, 1974.
[16] Citado por MARCOS MARGULIES
em seu ensaio “A circuncisão e a formação de um povo” in “A circuncisão – o
mito e o rito”. Editora Documentário, Rio de janeiro, 1974.
[17] Bíblia sagrada – edição
ecumênica. Barsa, 1977.
[18] Bíblia sagrada – edição
ecumênica. Barsa, 1977.
[19] Citado por MARCOS MARGULIES
em seu ensaio “A circuncisão e a formação de um povo” in “A circuncisão – o
mito e o rito”. Editora Documentário, Rio de janeiro, 1974.
[20] LACAN, J. (1958) – “Las formaciones del inconsciente”. Ediciones
Nueva Vision, Buenos Aires, Argentina,
1970.
[21]LACAN, J. (1958) – “Las formaciones del inconsciente”. Ediciones Nueva
Vision, Buenos Aires, Argentina, 1970.
[22] TRACTEMBERG, M. (1977) – “Psicanálise da circuncisão” – Editora
Civilização Brasileira S.A. – Rio de Janeiro
[23]LACAN, J. – “La Família” – Ediciones Homo Sapiens,
Argentina 1977.
[24]LÉVI-STRAUSS, C. (1967) – “As estruturas elementares do parentesco”.
Editora Vozes Ltda, Petrópolis e Editora da Universidade de São Paulo, S. Paulo
– 1976).
[25]LAPLANCHE, J. E PONTALIS, J.
(1967) – “Vocabulário da psicanálise”,
Moraes Editora, Lisboa, 1970.
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