DE COMO A FILOSOFIA PODE AJUDAR
UM PSICANALISTA
Coube-me apresentar, do dicionário de
Deleuze a palavra “maladie” (doença). Deleuze encontra-se doente e a palavra
maladie adquire um caráter pessoal. Em maladie já não se encontram conceitos teóricos
mas sim reflexões sobre a própria vida. Aqui uma primeira questão: é válido
usar-se reflexões íntimas (não tão íntimas assim pois foram expostas à
entrevistadora) de um autor teórico? Terão elas um interesse teórico? Até a algumas
décadas atrás os teóricos das humanidades e especialmente das ciências duras procuravam ser
objetivos em sua escrita, evitando falar de si mesmos e de sua relação com seus
pensamentos e teorias. Isso vem mudando aceleradamente. Muitos escritores falam
de si mesmos, de como chegaram a cogitar dos problemas apresentados em seus
escritos, qual a influência de suas experiências. Um autor que imediatamente me
vem à lembrança é o físico Murray Gell-Mann que no prefácio de seu livro “O
quark e o jaguar” escreve coisas como “O quark e o jaguar” não é uma
auto-biografia, embora contenha reminiscências de minha infância e um certo
número de casos sobre meus colegas de trabalho”; “No começo da primeira parte
descrevo algumas experiências pessoais que me levaram a escrevê-lo”. Ambas as
citações estão na p.9. Na minha opinião isto acontece porque cada vez mais se
reconhece que a teoria está ligada à vida e vice-versa. Apesar do nível de
abstração da filosofia de Deleuze podemos encontrar as raízes de seu pensamento
na cotidianidade. Ao falar de Platão, Deleuze aponta para a questão do modelo,
da boa cópia e do simulacro. A boa cópia é o verdadeiro pretendente, aquele que
tem direito de dirigir a República. Os simulacros são para Platão falsos
pretendentes sem direito a nenhuma reivindicação. O platonismo ao ser revertido
acaba com a diferença entre modelo, cópia e simulacro. Todos podem ser
pretendentes. O platonismo é uma filosofia máquina de Estado que tem a função
de perpetuar a elite no poder reprimindo o simulacro. Dando-se ao simulacro o
mesmo estatuto da boa cópia, e mais, acabando com a diferença entre modelo,
cópia e simulacro introduz-se uma máquina de guerra que desafia o poder do
Estado. Estamos portanto falando de uma teoria que tem tudo a ver com a vida.
Mas antes de chegarmos a este nível vejamos o que Machado em seu livro “Deleuze
e a filosofia” cita de Deleuze no que diz respeito à função da filosofia: “o
verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é
criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia é criar conceitos”. Essa
criação de conceitos filosóficos vem não só do estudo da filosofia mas de uma
varredura de vários campos de conhecimento e atuação humanos. Ele examina esses
campos para deles retirar conceitos filosóficos que têm um profundo parentesco
pois pertencem todos a uma mesma época e subjetividade. Se fazer filosofia é
criar conceitos, o que deve um psicanalista fazer diante de algum material que
lhe é oferecido? A função do psicanalista, na minha opinião, é compreender o
ser humano para ajudá-lo. Se eu me debruço sobre a vida de Deleuze - um ser
humano singular - certamente poderei encontrar elementos de reflexão sobre o
homem e a vida. Pergunta: o que a vida de Deleuze tem a ver com sua filosofia?
Sua filosofia é criar conceitos. Mas os conceitos são tirados de várias
disciplinas ligadas à vida. Então posso pensar os conceitos como ligados à vida,
tal como mostrei acima. Posso portanto pegar os fragmentos de vida que ele
apresenta e examiná-los à luz de sua teorização e de meus interesses. Posso
pegar algumas falas suas referentes à velhice: “a grande maravilha é que as
pessoas deixam a gente de lado, a sociedade deixa a gente de lado... Ser
deixado de lado pela sociedade é uma alegria tamanha!” “Caem todos os parasitas
que você carregou a vida inteira” “O velho é alguém que é...ele adquiriu o
direito de ser”. “Mas um velho simplesmente, que é apenas velho, é o ser”. Em suas teorizações Deleuze fala de
aparelho do Estado que é a imposição da mesmice, do platonismo e fala também de
máquina de guerra que é a oposição a essa mesmice, uma oposição que tem como fulcro filosófico a filosofia da diferença. Ele opõe a teoria filosófica da
representação (Platão) à teoria filosófica da diferença (Nietzsche). Encontramos
claramente esta oposição nas palavras de Roberto Machado na p.135: “Différence
et répétition salienta várias vezes o caráter conformista desse
pensamento ortodoxo, incapaz de romper com a doxa, com a opinião, visto que
apenas a universaliza ao elevá-la ao nível racional, conservando dela o
essencial, isto é, a forma, ou o uso das faculdades que lhe correspondem; por
outro lado, considera a finalidade prática desse pensamento como sendo a
recognição, o reconhecimento dos valores estabelecidos, o que o coloca a
serviço dos poderes das Igrejas, dos Estados. Mille plateaux, retomando a análise da imagem do pensamento nos
quadros da dicotomia entre aparelho de Estado e máquina de guerra, expõe a
mesma idéia: reafirma não só que a crítica à imagem do pensamento se faz não
privilegiando os conteúdos, mas a forma, isto é, sua conformidade a um modelo,
mas também ---- e principalmente ---- que esse modelo do pensamento é o
aparelho de Estado ou, em outros termos, que a imagem do pensamento é a
forma-Estado desenvolvida no pensamento”. “Desde que a filosofia se atribuiu o
papel de fundamento não mais deixou de benzer os poderes estabelecidos e de
decalcar sua doutrina sobre os órgãos de poder de Estado. O senso comum, a
unidade de todas as faculdades como centro do Cogito, é o consenso do Estado levado ao absoluto. Foi
notadamente a grande operação da crítica kantiana, retomada e desenvolvido pelo
hegelianismo” (citação do Mille Plateaux).
Bem que eu tinha razão de ligar as
teorias em geral à vida e a vida de cada homem à sua teoria. Posso especular,
sabendo que estou abusando de uma licença dramatizante, que Deleuze sentia-se
incomodado por ter de atender a convites do establishment. Ele estava diante de
um aparelho de Estado e reagia como uma máquina de guerra. Isto até o momento
em que velhice lhe deu a oportunidade de sair da luta e simplesmente SER, o que
significa DEVIR. Não posso deixar de lembrar os três momentos do homem trazido
por Nietzsche: o camelo (ter de carregar o peso do establishment, dobrar-se ao
aparelho de Estado); o leão, a máquina de guerra que luta contra o aparelho de
Estado; e a criança que está em um tempo aiônico, portanto fora desta luta. A
partir deste novo estado as forças se reconfiguram. Isto para nós analistas é
importante no sentido de sabermos valorizar as circunstâncias externas e
internas, não tratando o analisando fora de sua inserção de seu período histórico
nem fora de sua história particular; e para conhecer a história, especialmente
a particular é preciso que ele, o analisando, a conte, isto é, que o analista
sem preconceitos ouça a sua história. Neste momento me vem à mente “As duas
análises de Mr. Z” de Kohut. O paciente desta análise realizada por Kohut, no
período dos 11 aos 13 anos teve uma relação homossexual com o seu instrutor de
ginástica de 30 anos. A primeira reação é de horror, é de achar que o menino
terá sido extremamente prejudicado por esta relação. E, no entanto, este foi um
dos melhores períodos da vida de Z com repercussões positivas no seu futuro. Com
outro analisando poderia ser o contrário, mas com esse foi dessa maneira o que
mostra a importância de uma escuta não preconceituosa. Almodóvar é mestre em
nos mostrar as situações por dentro, driblando os preconceitos. Isto ele o faz
em vários filmes. Quero lembrar especialmente o filme “Fale com ela” em que um
estupro é um estupro para a máquina de Estado mas não é um estupro para o devir
da mulher que foi amorosamente possuída pelo enfermeiro. Oliver Sacks é outro
mestre em nos mostrar como os horizontes humanos ao diferirem organizam formas
de viver diferentes. Vou relatar e citar um de seus casos do livro “Um
antropólogo em Marte”. Depois de um acidente um artista, pintor, tornou-se daltônico
o que de início foi terrível e alterou sua percepção do mundo e seu modo de
vida. Vejamos a continuação nesta citação: “O sr. I, com sua apurada
sensibilidade visual e estética, achava essas mudanças particularmente
intoleráveis .... A percepção da cor havia sido parte essencial não só do
sentido visual do sr. I, mas de seu sentido estético, sua sensibilidade, sua
identidade criativa, uma parte essencial de como construía seu mundo --- e
agora a cor havia desaparecido, não apenas da percepção, mas também da
imaginação e da memória. Os ecos dessa condição foram muito profundos. De
início, ficou intensa e furiosamente consciente do que perdera (ainda que
“consciente”, por assim dizer à maneira de um amnésico)). Podia olhar fixamente
para uma laranja, enfurecido tentando forçá-la a recobrar sua cor
verdadeira....Viu-se num mundo não apenas empobrecido, mas alienado e
incoerente, quase um mundo de pesadelo..... Mas aí, com a aurora
“apocalíptica”, e a pintura que fez dela, surgiu o primeiro sinal de mudança,
um impulso de reconstruir o mundo, de reconstruir sua sensibilidade e
identidade. Parte disso era consciente e deliberado .... Mas boa parte se
passou abaixo desse nível, num nível de processamento neuronal não diretamente
acessível à consciência ou ao controle”.
Houve “uma transformação de valores, de forma que a sua completa
estranheza e alienação do mundo a partir de seu daltonismo, que de início tinha
uma qualidade de horror e pesadelo, passou a ter um estranho fascínio e
beleza”(p.52). O sr. I mudou seus hábitos de vida: tornou-se notívago. Palavras
de I: “Vou me tornando aos poucos um notívago. É um mundo diferente: há muito
espaço --- você não fica encurralado nas ruas, pelas pessoas... É um mundo
completamente novo”. Temos aí um outro mundo a ser repeitado e que só pode ser
entendido por um analista despido de quaisquer preconceitos e disposto a
penetrar nesta outra subjetividade tão diferente da sua. A reorganização deste
mundo pessoal depende das novas capacidades surgidas a partir da perda da visão
colorida. Um outro mundo a ser entendido
e respeitado. Se tal indivíduo estivesse em análise o analista teria de se
mover em águas desconhecidas apenas abrindo espaço para a reconstrução de
identidade. O que é berrante neste caso apresenta-se em cores pastéis em
outros, como no caso da velhice que traz novas capacidades (e perdas de outras)
que permitem modificações. No caso de Deleuze ele deixa de ser uma máquina de
guerra para se tornar um devir/ser. “O velho é alguém que é. Ponto final. Podem
dizer que é um velho rabugento, etc. Mas ele é. Ele adquiriu o direito de
ser”(p.3/4).
Vamos
examinar o que é Ser para Deleuze: “Nietzsche não suprime o conceito de ser.
Propõe uma nova concepção de ser. A afirmação é ser. O ser não é o objeto da afirmação...
A afirmação só tem a si mesma como objeto. A afirmação como objeto da
afirmação: isto é o ser. Nela mesma e como a afirmação primeira ela é o devir.
Mas ela é o ser enquanto que ela é o objeto de uma outra afirmação que eleva o
devir ao ser ou que extrai o ser do devir. É por isso que a afirmação em toda a
sua potência é dupla: afirma-se a afirmação. É a afirmação primeira (o devir)
que é ser, mas apenas como objeto da segunda afirmação. As duas afirmações
constituem a potência de afirmar em seu conjunto”. (Nietzsche e a Filosofia).
Na velhice Deleuze finalmente pode ser, isto é, pode devir. Para nós analistas
é uma sugestão de respeito às condições históricas da vida de cada analisando.
Nietzsche
foi o primeiro a denunciar as teorias que matam a vida. Deleuze segue na
esteira de Nietzsche. Ele é um pensador que pensa a vida no seu devir. O
Deleuze que tenho dentro de mim não se oporia a que examinássemos suas
concepções acerca de si mesmo na relação com o mundo para enriquecermos nosso
acervo de experiências, assim como nos enriquecemos com suas formulações mais
abstratas. Em minha opinião uma teoria psicanalítica só terá amadurecido dentro
de nós quando pudermos usá-la não como referência teórica transcendente, mas
como experiência incorporada tornada imanente. É claro que há uma jornada a ser
percorrida e também é claro que muitas vezes recorremos a um apoio
transcendente para lidar com uma situação. Mas o desenvolvimento desejável das
teorizações seria passarem de uma transcendência para uma imanência. Deleuze
diria que as atividades das diversas áreas do quefazer humano devem poder
permitir a criação de conceitos filosóficos, pois tudo o que acontece numa
época tem um fio subjetivo ligando-os. Como psicanalista interessa-me
poder compreender e ajudar ao meu analisando e para isso preciso estar em
contato e em intimidade com ele. Não posso ouvi-lo pensando em conceitos, mas
devo relacionar-me diretamente com ele com o meu ser de experiência que é um
ser que congrega tudo o que já pensei e passei: desde minhas vivências até meus
estudos transformados em experiências. Para Deleuze filosofar é criar
conceitos. E para criar conceitos Deleuze, segundo Roberto Machado, invade várias
áreas do conhecimento humano para extrair conceitos para a sua filosofia. Se o
filósofo cria conceitos o que faz o psicanalista? Ele tenta entender a maneira
de ser de cada pessoa, pois ele terá de lidar com pessoas em sua clínica e
quanto mais ele souber sobre pessoas, mais apto estará para ajudá-las. Se eu
arranho o entendimento da pessoa Deleuze, criador de importantes conceitos da
pós-modernidade, conceitos que têm a ver com a vida a ser vivida, então
acrescento alguma coisa ao meu acervo psicanalítico. Exercer a função psicanalítica é pôr minha
experiência a serviço do analisando. Eu não deveria passar pela teoria para
formular uma interpretação ou realizar um gesto. A fala e o gesto devem emanar
diretamente da relação e são diferentes de uma fala e gesto comuns por terem
uma intenção terapêutica. Esta intenção terapêutica fica incorporada à
experiência como uma insinuância.
Voltando a Deleuze: “Adquiri todos
os direitos de uma saúde fraca”. “O fato de eu ter uma saúde tão frágil me dava
muita segurança para recusar qualquer viagem....A doença me libera muito. É
ótima neste sentido”. “Ele (o velho) adquiriu o direito de ser”... “(Com a
velhice) caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira”... ”Mas o
velho que é apenas o velho é o ser”. Todas estas frases nos mostram de como
Deleuze pessoa estava condicionado à representação, à identidade, ao aparelho
de Estado. A velhice o libera para o ser/devir o que significa que antes ele
tinha de pautar a sua diferença pela identidade imposta pelas obrigações
sociais e morais de sua convivência com as pessoas e as instituições. A
diferença pura é uma utopia filosófica da qual ele se aproxima na velhice que o
libera. Também o libera para ser/devir a saúde fraca. Para a psicanálise essa
dualidade psicológica ---- estar subordinado ao superego cultural (identidade)
e desejar ser (devir) ---- é um paradoxo que deve ser cuidado com delicadeza. O
superego cultural é uma influência forte que desafiada pode desestabilizar a
pessoa, mas o desejo de devir tem também a sua força. O equilíbrio entre estas
forças estará a cargo do analisando e não de uma avaliação do analista. Assim
como todo equilíbrio de todas as forças, todos os desejos, todos os medos e
todas as defesas estão também a cargo do analisando. É ele quem pode encontrar
o seu próprio equilíbrio e não o analista que apenas abre caminho para que este
equilíbrio (instável) seja encontrado pelo próprio analisando de acordo com as
forças e defesas que o afetam.
Deleuze procurou formular uma filosofia
da diferença pura, absoluta em que o desenvolvimento de cada um dar-se-ia não
por comparação, por competição, por submissão, por reação, mas por um movimento
interno de vontade de potência. Mas esta diferença pura parece ter de conviver
com aspectos de identidade. Eis o que escreve Roberto Machado no seu livro
“Deleuze e a filosofia”: “É difícil saber – e de todo modo é ainda bastante
cedo para decidir – se essa crítica do dualismo, realizada em nome do
pluralismo mas obrigada a criar novas dualidades, é uma questão terminológica,
um problema de escritura, ou se aponta para uma dificuldade conceitual
constitutiva da filosofia de Deleuze proveniente da inadequação entre suas
propostas e seu funcionamento ou da diferença entre gritar “viva o múltiplo” e
“fazer o múltiplo”. Esta questão filosófica colocada por Machado é
correlata à dificuldade de escapar das obrigações sociais (identidade) e à
necessidade de um certo contexto para que as obrigações sociais sejam superadas
pela possibilidade de ser/devir. Continuando a citar Machado: “Não há dúvida
de que a grande ambição de Deleuze é realizar, inspirado sobretudo em Bérgson,
uma filosofia da multiplicidade...Isso não impede, contudo, como estamos vendo,
que sua filosofia seja dualista no sentido preciso de situar o pensamento, de
modo geral, em dois espaços não apenas diferentes, mas antagônicos”. Ele
está falando do espaço do modelo platônico que é o espaço da identidade, da
subordinação da pessoa a modelos, e do espaço da multiplicidade, do devir, da
diferença pura quando desaparece essa subordinação. A dualidade persiste pois a
vida nos impõe esta dualidade da qual alguns, como Deleuze tentam escapar. Esta
dualidade fica explícita no livro “Diferença e repetição” onde Deleuze “salienta
várias vezes o caráter conformista desse pensamento ortodoxo (o pensamento da
representação, do modelo)....por outro lado considera a finalidade prática
desse pensamento como sendo a recognição, o reconhecimento dos valores
estabelecidos, o que o coloca a serviço dos poderes das Igrejas, dos Estados”.
“Mille plateaux, retomando a análise da imagem do pensamento nos quadros da
dicotomia entre aparelho de Estado e máquina de guerra, expõe a mesma
idéia....esse modelo de pensamento é o aparelho de Estado... é a forma-Estado
desenvolvida no pensamento”(Machado, Deleuze e a Filosofia, p.135).
Temos aí a luta entre o aparelho do
Estado e a máquina de guerra. Eu incluo no aparelho do Estado as obrigações
sociais e os constrangimentos
profissionais pelos quais temos de passar. E Deleuze ao valorizar a doença e a
velhice como lhe permitindo um status diferente está falando de sua antiga sujeição
parcial ao aparelho do Estado por mais que ele fosse uma máquina de guerra.
Como analistas temos de nos lembrar da força do aparelho do Estado para que não
passemos a idéia de que ela não é uma força poderosa; é sim uma força atuante
que não pode ser ignorada. O analista precisa estar ciente de que o analisando
está sujeito a forças poderosas de várias origens não forçando uma barra para
enfrentá-las ou negá-las. A idéia de que podemos nos desenvolver exclusivamente
segundo nossas potencialidades --- uma idéia individualista que não leva em
conta o meio ----- é falsa e pode ser prejudicial quando inconscientemente
passada para o analisando.
Aqui surge mais uma questão. A questão
da neutralidade. Hoje sabemos que a neutralidade não é possível. De alguma
maneira passamos nossas convicções, nossa weltanschauung (visão de mundo) ao
nosso analisando, certamente não diretamente, mas pelo conjunto de verbalizações
e expressões corporais. A idéia de que podemos ser poderosos prescindindo ou
ignorando o meio ambiente é anti-terapêutica. As palavras de um Deleuze experiente
são importantes para desfazer a impressão de que não estamos de forma nenhuma
sujeitados ao aparelho de Estado. Deleuze enquanto saudável e jovem é uma
máquina de guerra em luta com o aparelho de Estado. Na velhice o aparelho de
Estado deixa de incomodá-lo e ele não precisa ser uma máquina de guerra. Na
velhice ele pode apenas ser. Isto serve como um alerta para nós psicanalistas.
Não podemos ignorar, descartar o aparelho de Estado em suas múltiplas
manifestações, inclusive como superego social. Aqueles que desejam escapar das
ordens do aparelho de estado serão máquinas de guerra. Mas, até que ponto podem
ser máquinas de guerra sem se desequilibrarem excessivamente? Como fica a
negociação da máquina de guerra com o aparelho do estado? Esta negociação é
absolutamente individual. O que o analista pode é propiciar a negociação. A
distribuição de forças não está no conhecimento do analista, mas sim do
analisando. Um analisando meu queixa-se de sua analista anterior dizendo que
ela tentava fazer com que ele largasse suas atividades artísticas e fizesse uma
faculdade. Isto não era dito diretamente, mas passado nas entrelinhas. Certamente
este tipo de intervenção ideológica é prejudicial ao analisando. É preciso que
o analista tenha consciência de seus preconceitos para que eles não interfiram
na análise. E não é só uma questão de palavra, mas de passar sutil e
inconscientemente a própria ideologia. Neste caso é preferível por em confronto
direto as duas ideologias para que o analisando possa se defender da ideologia
do analista. Não é que o analista não possa dar dados de realidade em relação
às possibilidades das várias carreiras. Até pode, mas ele deve parar aí. A
escolha, isto é, o equilíbrio pertence ao analisando. E mais: ganhar ou não
dinheiro, viver na pobreza ou riqueza, agradar ou não as figuras influentes é
uma questão do analisando. A questão do analista é torná-lo o mais livre
possível dentro de suas circunstâncias e limitações para escolher seus
caminhos.
De um lado a prisão da representação e
de outro a liberdade do devir. No meio o leão que com sua máquina de guerra
luta contra o aparelho de Estado. E que na velhice é a criança do devir. Todas
estas são etapas que devem ser levadas em consideração pelo analista.
Uma
outra citação de Deleuze que está em Mil Plateaux: “Desde que a filosofia se
atribuiu o papel de fundamento não mais deixou de benzer os poderes
estabelecidos e de decalcar sua doutrina sobre os órgãos de poder de Estado”. Ele
é uma máquina de guerra ao escrever isto, mas até certo ponto submete-se ao
aparelho do Estado ao concordar com atividades que ele finalmente pode recusar
na velhice. Esta é, para ele, uma das vantagens da velhice.
A
ideologia do analista não seria no sentido da libertação, mas das
possibilidades de um acordo dentro de cada pessoa, dentro das possibilidades de
cada pessoa entre as obrigações (aparelho do Estado) e a liberdade. Por um
tempo ele será uma máquina de guerra, uma máquina de guerra que fará os
arranjos possíveis com o aparelho do Estado. Certos fatores poderão mais ou
menos liberá-lo desta luta. No caso de Deleuze é a saúde fraca e a doença.
Deleuze
nos diz que a saúde fraca favorece a proposta de pensar. “Sempre me cansei facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se
alguém que se propõe ---- nem estou falando do sucesso desta empreitada ----
mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar,
saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. ... acho que a saúde
fraca favorece este tipo de escuta”(p.1).
Até
aqui estive falando do homem como máquina de guerra e que pode se tornar devir
em certas circunstâncias como a velhice. Seria a seqüência camelo-leão-criança
de Nietzsche. Agora se trata de algo um pouco diferente embora com parentesco
próximo. O conhecimento de si próprio condicionando as possibilidades de estar
no mundo. É assim que estou interpretando a fala de Deleuze. Sua saúde fraca
facilita o exercício do pensamento. Aquilo que cada um é dá-lhe um leque de
possibilidades de ser, de estar no mundo. O analista deve ter isto em mente.
Estou evidentemente pregando uma ideologia de psicanalista que é a ideologia de
um psicanalista, a minha ideologia. Mas esta é a minha contribuição a partir
das considerações pessoais do Deleuze. Foi o que Deleuze despertou em mim.
Assim como Deleuze usa as várias áreas do conhecimento humano para delas
extrair conceitos para a filosofia (filosofia para Deleuze é criar conceitos)
assim eu, um psicanalista desconhecido uso as confissões de Deleuze para pôr em
relevo a minha direção de pensamento referente a como encaro um ser humano na
vida e principalmente um analisando na clínica. Até aqui tirei duas direções:
1- não é possível ignorar o aparelho de Estado. Cada pessoa lida com este
aparelho de Estado da maneira que lhe é possível. Não adianta o analista
estimular o analisando a ir contra o aparelho do Estado além da medida de suas
possibilidades. Então não adianta o analista fazer exortações, provocar
repressões, negações, etc. Ele deverá oferecer um ambiente onde o próprio
analisando descubra suas forças e fraquezas, e, naturalmente, se quiser lutar
com suas dificuldades até poderá estar de acordo com o desejo do analista, mas
isto é uma decisão do analisando que “sabe” até onde pode chegar sem se
prejudicar. 2- O analisando deve permanentemente estar em estado de autoconhecimento
em atualização para escolher seu caminho de acordo com suas características,
seus talentos, ambições, habilidades, ideais. Serve aqui o exemplo do velho e
os vários exemplos de Oliver Sacks que fala do mundo individual de cada um e
como este mundo muda por efeito de acontecimentos. Então o analista deverá
proporcionar um ambiente que facilite este permanente saber processual de si
mesmo. Não deve tentar encaminhá-lo para nenhum lugar, mas esperar que ele, o
analisando, a partir do conhecimento de si decida por onde e como quer ir. Se o
analisando pedir auxílio nesta busca e nesta pesquisa o analista certamente não
deverá se omitir. 3 – Finalmente, a fala de Deleuze sobre Fanny abre mais um
campo de reflexão no campo humano/psicanalítico, isto é, no campo do ser, estar
e atuar no mundo. Repetindo a fala de Deleuze: “E com Fanny, acho que também não é um problema. Mesmo se para
ela...Não sei...É difícil imaginar o que teria feito a pessoa que ama se
tivesse vivido outra vida. Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela
certamente não viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que
não teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação literária
muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances esplendidos que valem por
mil viagens? Claro que há problemas, mas estão acima de minha compreensão” (p.4).
Comentário: Fanny escolheu o amor, perdeu as riquezas das viagens, mas
descobriu as riquezas da literatura. Sua vocação seriam a viagem e o amor. Ela
poderia ter escolhido a viagem e encontrar o amor nas viagens. Ela escolheu o
amor e encontrou as viagens nos livros. Não há um único destino possível e
inelutável. O destino é feito de circunstâncias momentâneas. Em dado momento
vários caminhos se apresentam. Não existe aquele que é o certo. Será o conjunto
de forças atuantes que fará a pessoa escolher este ou aquele caminho. Ao
analista cabe facilitar ao analisando perceber quais são as forças atuantes. Ao
analisando cabe escolher o caminho.
Nahman Armony
Nenhum comentário:
Postar um comentário