4- POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

IV

Comportamento covivencial

1- A postura-continente no comportamento covivencial

 
          Farei aqui uma breve recapitulação clarificadora. Fizemos uma viagem pelas terras da psicanálise dirigindo o nosso olhar para as posturas que o terapeuta adota em relação ao seu paciente. Falamos das posturas espelho e continente, as quais se passam dentro de um comportamento interpretativo, e vamos em seguida examinar aquelas posturas que ocorrem dentro de um comportamento covivencial: a postura simbionte, a dialogal e ainda a própria continente que já havíamos visto dentro do outro comportamento. A postura-espelho confunde-se com a técnica psicanalítica básica, aquela que foi desenvolvida por Freud para atender a pacientes neuróticos (neuroses transferenciais). Vimos que o espelhamento refere-se unicamente ao momento da interpretação quando se torna importante evitar a interferência indevida dos conteúdos inconscientes do terapeuta. Falei do mal-uso da postura-espelho, que se presta, aliás como qualquer outra postura, a ser usada defensivamente.
       A postura-espelho liga-se à função pai e por isso mesmo suas interpretações são realizadas de tal maneira que facultam ao paciente sair das situações regressivas. A postura-continente liga-se à função mãe e suas interpretações facilitam a regressão, o que permitirá que sejam revelados conteúdos, dinamismos e mecanismos pré-edípicos primitivos. Vimos que a postura-espelho e a postura-continente estruturam-se em torno da intervenção interpretativa/obtenção de insight. As situações vivenciais são usadas para se poder desvendar os conteúdos, mecanismos e dinamismos inconscientes do paciente. A postura-espelho tem seu ponto de convergência na relação triangular, enquanto a postura-continente centraliza-se na relação diádica. Postura-espelho e postura-continente pertencem ao comportamento interpretativo. Porém a postura-continente pode ser considerada o local de transição do comportamento interpretativo para o comportamento covivencial. A postura-continente fez emergir fatos e efeitos de tamanha importância clínica que, embora ignorados ou até combatidos pela teoria da técnica da época, tiveram de ser reconhecidos e acabaram por ser operacionalizados no modo de comportamento covivencial. Aos poucos realizou-se a passagem do comportamento interpretativo, que em sua formulação explícita desconsidera a importância terapêutica maior do aspecto vivente da relação, para um comportamento covivencial, o qual se ocupa basicamente com as possibilidades evolutivas existentes no viver situações terapêuticas. A grosso modo referimos a adequação da postura-espelho a neuroses e da postura-continente a borderlines, deixando porém claro não se tratar de uma divisão rígida, já que em um mesmo tratamento pode tornar-se necessário alternar as posturas.
        Sigamos adiante. A postura-continente pode, portanto, ser usada dentro do modo covivencial do comportamento terapêutico. Mas o que é isso de comportamento covivencial? Afinal de contas não se vive a relação analítica? E, em vivendo-a não se tem vivências? Como então falar de comportamento covivencial em análise? Não inclui toda a análise um comportamento covivencial? É claro que sim. Só que este aspecto da relação é desconsiderado no modo interpretativo do comportamento terapêutico. Tentemos caracterizar a perspectiva embutida no comportamento interpretativo: o paciente procura fazer associações livres; a sua produção verbal e não-verbal é encarada como um material cujo significado oculto pode ser captado por um terapeuta em estado de atenção flutuante. Ao realizar a 'gestalt' desse material o analista apresenta-o ao cliente sob a forma de uma interpretação verbal na esperança de que ele obtenha insight e amplie o seu campo de consciência.
        Aproveitemos o momento para contrastar o comportamento interpretativo com o comportamento covivencial. Tentemos, provisoriamente, delinear este último: vive-se uma relação afetiva sobre a qual se fala. As produções tanto do cliente quanto do terapeuta são encaradas como resultantes da relação. Através do viver a relação e dela falar obtém-se uma ampliação da experiência com um aumento do sentimento de segurança e confiança básica.
        Estas duas perspectivas já aparecem embrionariamente nos primórdios da psicanálise, mais exatamente, no período pré-psicanalítico. Breuer enfatizava a catarse como agente curativo enquanto Freud dava relevo à integração da ideia na corrente associativa. Uma pertence à ordem da vivência e a outra à da interpretação. Elas, no entanto, não se excluem; ao contrario, são complementares . Trata-se apenas de uma questão de ênfase. Breuer considerava a ab-reação fundamental para a unificação do psiquismo, tendo a palavra a função de possibilitá-la, enquanto que para Freud a palavra era o fator 'princeps' da integração psíquica. A posição de Breuer, porém, não caracteriza um comportamento covivencial. Isto porque não existe uma covivência, uma coparticipação do terapeuta. Enquanto o cliente realizava a sua catarse, o terapeuta ficava como observador - atento, interessado, sensível, é verdade, mas de qualquer forma apenas um observador, sem interagir com a realidade fantasmática que desfilava diante de si.
        Freud, apesar de seu comprometimento com a interpretação, aponta, como não podia deixar de ser, para aspectos vivenciais da terapia analítica, sem que eles componham aquilo que chamei de comportamento covivencial. Já na situação fundamental da psicanálise o dado vivencial mostra-se necessário. O momento correto da interpretação ("timing") exige uma sensibilidade especial do analista para perceber que a ligação transferencial está propicia e que a interpretação está próxima do consciente. (Freud, 1910, p.211). Sabemos que o insight que verdadeiramente funciona é aquele não intelectualizado (Freud, 1913a, p.184) e que, portanto, se acompanha de uma carga afetiva. A vivência está, pois, valorizada, mas tem um papel secundário em relação à conscientização, servindo de veiculo para esta (Freud, 1913b, p.343) fala-nos também de uma atitude de "carinhoso interesse e simpatia" para estabelecer uma 'transferência aproveitável', um 'rapport' (Freud, 1913b, p.343). Trata-se aqui do estabelecimento de condições básicas para que a terapia analítica possa ocorrer. Funciona como um pano de fundo que mantém o 'rapport' necessário à produção de associações livres e à recepção das interpretações com os ouvidos da sensibilidade. Não se enquadra, portanto, dentro da noção de comportamento covivencial. Transferência e contratransferência são também fenômenos vivenciais, respectivamente, do cliente e do terapeuta. Não se trata, porém, daquilo que convencionei chamar de comportamento covivencial, pois neste há uma interpenetração espacial terapeuta/paciente, enquanto que a conotação teórico-prática que os termos acima trazem é de paciente e terapeuta separados por um espaço interpretativo.
        Talvez aqui seja o melhor momento para introduzir a contribuição de Ferenczi. Ele foi um pesquisador ousado, inquieto, sensível e perspicaz, que percorreu variadas sendas na tentativa de descobrir meios para ajudar o seu paciente. Jamais desistiu de encontrar maneiras, modos e métodos para dar prosseguimento ao tratamento, desde que o paciente assim o desejasse. "Eu tenho uma espécie de crença fanática na eficácia da psicologia profunda e isto levou-me a atribuir os ocasionais fracassos não tanto à 'incurabilidade' do paciente mas sim à nossa falta de pericia, uma suposição que necessariamente leva-me a tentar alterar a técnica atual nos casos severos..." (Ferenczi, 1931, p.128) Através desta sua busca incessante, tornou-se Ferenczi o introdutor e precursor de muitas técnicas terapêuticas, resultando uma rota de evolução que, de certa maneira, assemelha-se à  percorrida neste trabalho. Ele se apresenta como analista clássico entre 1909 e 1926. Mas já em 1924 publica um livro em co-autoria com Rank ("The developmental aims of  psychoanalysis") onde chama a atenção para a necessidade de se "dar muito mais atenção às formas muito primitivas de relação, como por exemplo entre uma mãe e seu filho." (Ferenczi, in Balint, 1967, p.23) se desejamos compreender os fenômenos contratransferenciais. Em 1931, Ferenczi descreve uma situação na qual o analista se comporta como mãe diante de um paciente que age como uma criança pequena: "O comportamento do analista é, deste modo, um pouco como de uma mãe afetuosa que não irá dormir até que tenha conversado com o filho sobre todas as suas preocupações atuais -- grandes ou pequenas -- seus medos, suas más intenções e seus escrúpulos de consciência, relaxando-o para que possa descansar. Desta maneira, podemos induzir o paciente a regredir a todas as primitivas fases do amor passivo, quando, justamente como uma verdadeira criança a ponto de dormir, ele murmurará coisas que nos darão insight do seu mundo de sonhos." (Ferenczi, 1931, p.137). Em outro artigo Ferenczi continua a desenvolver o seu pensamento na mesma direção: "O paciente, entrando em transe, é uma criança mesmo a qual não reage mais a explanações intelectuais; talvez responda somente ao afeto materno; faltando afeto o paciente sente-se sozinho e abandonado na sua maior necessidade, e portanto na mesma situação intolerável que o levou uma vez a uma divisão de sua mente e eventualmente à sua doença; assim não é de admirar que o paciente não possa mais que repetir no agora da situação analítica, exatamente a mesma formação de sintoma que surgiu no momento do início de sua doença." (Ferenczi, 1933, p.160). Esta situação regredida, se por um lado permite um trabalho profícuo, por outro levará o paciente a fazer demandas excessivas que não poderão ser atendidas: "No entanto, mesmo em análise, esta relação delicada não pode ser eterna. L'appetit vient em mangeant. O paciente, que se transformou numa criança, vai cada vez mais adiante com suas reivindicações e assim tende a adiar mais e mais o advento da situação de reconciliação, a fim de evitar ser deixado só, isto é, para escapar ao sentimento de não ser amado...Quanto mais profunda e satisfatória for a situação de transferência, maior será, naturalmente, o efeito traumático do momento quando finalmente o analista é compelido a colocar um termino à sua licença irrestrita." (Ferenczi, 1931, p.137). Quando colocar os limites? "Pacientes adultos, também, devem ter liberdade na análise para se comportarem como crianças desobedientes (isto é, descontroladas); porém, se o adulto cai no erro, o qual às vezes nos atribui, quero dizer, se ele renuncia ao seu papel no jogo e passa a atuar a sua realidade infantil em termo de comportamento adulto, torna-se necessário mostrar-lhe o mal que faz à terapia mudar as regras do jogo. Precisamos lidar com esta situação, ainda que muitas vezes seja um árduo trabalho, de maneira a confinar a espécie e extensão de seu comportamento dentro dos limites do comportamento de uma criança." (Ferenczi, 1931, p.132). Diante da situação de frustração imposta pelo terapeuta o cliente poderá apresentar reações extremadas. "Palavras ditas com tranquilidade e tato, talvez reforçadas por uma pressão encorajadora na mão, ou, se isto não for suficiente, por um amigável carinho na cabeça, ajudam a mitigar a reação a um ponto em que o paciente se torna novamente acessível." (Ferenczi, 1931, p.138). Temo aí todo um roteiro de comportamento terapêutico que nos lembra a postura continente. Ferenczi apontou também para as dificuldades pessoais do terapeuta, as quais, ocultas do paciente, dão origem ao que ele chamou de 'hipocrisia profissional'. "É extraordinário como a renúncia à 'hipocrisia profissional' - uma hipocrisia vista até agora como inevitável - ao invés de ferir o paciente, conduz a uma melhora na sua condição." (Ferenczi, 1931, p.132). Porém, diante de certo tipo de agressividade, recomenda outra conduta: "...é melhor admitir honestamente que achamos a conduta do paciente desagradável, porém sentimos que é nosso dever controlarmo-nos, já que sabemos que ele não se daria o aborrecimento de ser inadequado, se não houvesse alguma razão." (Ferenczi, 1931, p.133). A mesma sinceridade é preconizada no que diz respeito aos erros do terapeuta:"...a admissão dos erros do analista produz confiança no seu paciente." (Ferenczi, 1933, p.159). Vemos, portanto, Ferenczi encaminhando-se na direção do comportamento covivencial: "Devo-lhes lembrar que estes pacientes não reagem a frases teatrais, porém somente a uma simpatia real e sincera...eles mostram um extraordinário, quase clarividente conhecimento a respeito dos pensamentos e emoções que passam pela mente do analista. Tentar enganar o paciente a este respeito, parece ser quase impossível e se alguém o tenta, colherá apenas más consequências." (Ferenczi, 1933, p.161). Tal qual Beethoven que, no espaço de uma vida, conduziu a musica do classicismo ao romantismo, chegando em seus últimos quartetos às portas do modernismo, Ferenczi percorreu todo o caminho que iniciando-se na postura-espelho, passou pela postura-continente e chegou à beira do comportamento covivencial.
        Franz Alexander é um autor que se aproxima do comportamento covivencial. Na 'experiência emocional corretiva' (Alexander, 1946) o cliente deve reviver com o terapeuta situações primitivas, e este deve comportar-se de modo diferente das figuras significativas do passado, a fim de que, através de novas experiências, possa o paciente corrigir as suas distorções. "...Se bem que seja necessário que o terapeuta mantenha em todo momento uma atitude subjetiva e de ajuda, esta atitude encerra a possibilidade de uma grande diversidade respostas em relação ao paciente. As reações espontâneas às atitudes deste não são com frequência desejáveis para a terapia, pois podem repetir a impaciência do genitor ou a solicitude que originaram a neurose, e não podem, em consequência, constituir a experiência corretiva necessária para a cura". (Alexander, 1946, p.84-85). Alexander, portanto, preconiza a assunção deliberada de papéis, o que, na verdade, retira o terapeuta de uma verdadeira participação, de uma autentica covivência com o cliente.  A este respeito Greenson faz uma crítica pertinente: "O deliberado assumir de papéis e atitudes é anti-analítico porque cria uma situação não analisável. Há um elemento de perfídia enganadora e decepção que desemboca numa desconfiança realista do terapeuta," (1967, p.50). Veremos mais adiante como no comportamento covicencial as emoções do analist saogenuinas. É como nos diz Searles: "...em minha experiência o terapeuta não expressa nestas atuações afetos que são meramente uma espécie de representação, deliberadamente assumida e empregada como uma manobra técnica indicada para o momento. Em minha experiência, os afetos são autênticos, espontâneos e por vezes quase engolfantes de tão intensos." (1965, p.345/6). 
        Em 1940 Mme. Sechehaye apresentou um caso de recuperação de uma esquizofrênica, no Seminário Psicanalítico de Lausanne, através de um método que ela denominou de 'realização simbólica'. Consiste em viver com o cliente as situações terapêuticas que se apresentam, através de gestos e objetos simbólicos. É famoso o episódio da maçã. Renée, a cliente esquizofrênica, recusava-se a comer inclusive maçãs que até então constituíam parte importante de sua alimentação. Percebendo o esforço de Mme. Sechehaye para ajudá-la, Renée respondeu à oferenda de maçãs que ela lhe fazia da seguinte maneira: "Sim, mas estas são as maçãs que são vendidas, maçãs de pessoas grandes, e eu desejo as maçãs da mamãe, como estas" - e ela apontou para os seios de Sechehaye. - "Estas maçãs a mamãe só as da quando se tem fome." - continuou Renée. Mme Sechehaye compreendeu a mensagem; ela sabia que a mãe da paciente tivera dificuldades em amamentá-la. Cortou então um pedaço de maçã e a ofereceu a Renée, dizendo: "É hora de beber o leite bom das maçãs da mamãe, mamãe vai te dar." (Sechehaye, 1947, p.33). Então Renée apoiou-se sobre a espádua da analista, colocou a maçã sobre o seu peito e comeu de olhos fechados, cheia de compunção, com uma intensa com uma intensa felicidade. Outro exemplo: "Renée tinha uma mancha de tinta vermelha na mão. Ela exclamou: 'Eu cometi um crime!' Então abrimos a sua mão, e soprando-a dissemos: 'Veja! o crime foi embora!'. A culpabilidade se dissipou, e a agitação foi quase inteiramente suprimida." (Sechehaye, 1947, p.71). Sem dúvida, Mme. Secheayhe desempenhou nesses dois episódios o papel de Mãe-Boa-Onipotente-Adequada, aquela que atende aos apelos angustiados de um ser desamparado e necessitado. Trata-se, porém, de um desempenho realizado com alma, convicção e veracidade. Seus sentimentos maternais foram, efetivamente, mobilizados. O simbólico é vivido por Renée muito concretamente, não da maneira 'como se' mas 'sendo'. E certamente Mme. Sechehaye deve ter vivido estas ocasiões de forma plena, de maneira que o simbólico para ela era acompanhado de sentimentos vivos, um simbólico para ela também quase concreto. Sem dúvida, estamos aqui no comportamento covivencial. 
        Muitos outros terapeutas contribuíram para que o comportamento covivencial tivesse o seu lugar na psicanalise, mas demoraríamos demais em fazer uma resenha, e já temos a base indispensável par falar de três nomes que avultam na implantação definitiva do comportamento covivencial. Refiro-me a Balint, Winnicott e Searles.
           Voltemos a caracterizar o comportamento covivencial, agora já com uma bagagem histórica. O comportamento covivencial deve ser distinguido de aspectos vivenciais que são focalizados mesmo na modalidade interpretativa da psicanálise. Deve ser diferenciado do 'timing', do afeto que acompanha a reação à intepretação, da catarse e da ab-reação, das vivências transferenciais e contratransferenciais. Em todos estes casos a sessão estrutura-se em torno da intervenção interpretativa. No comportamento covivencial a estruturação realiza-se em torno da interação vivencial terapeuta-cliente. Ambos vivem a relação em seus aspectos vivenciais e fantasmáticos, cuidando, falando e preocupando-se com ela. É neste viver, preocupar, cuidar e falar que a relação se enriquece e progride - e aí está o seu efeito terapêutico. Mas então, em que difere a relação terapêutica de uma relação comum? Nesta não existe também, nos casos mais afortunados, uma abertura mútua, um progresso, um desenvolvimento de duas personalidades? Sem dúvida que sim. A diferenciação estaria principalmente: no objetivo terapêutico específico da relação (Armony, 1978a, p.29-30) que se encontra na relação covivencial.
        Como se chegou a este comportamento covivencial? Que problemas e situações obrigaram os analistas a uma tão radical mudança de comportamento? Voltemos por um instante à situação continente, agora para, em acentuando certos aspectos desta postura, desvendar, pelo seu exagero, os fatores que conduzem a díade psicanalítica a um impasse. Na postura-continente, o terapeuta agiria como se fosse o grande receptáculo dos conteúdos do cliente, colocando-se como se fosse de uma amplidão incomensurável, onde tudo cabe, aquele que tudo aguenta, por mais forte, estranho ou terrível que seja. Não há um intenção de troca igualitária de experiências. A troca que existe é a de compreensão, desintoxicação e tranquilização por parte do terapeuta e de revelação, emoção e intensidade do lado do cliente. O terapeuta não desvela sua humanidade. O desenvolvimento de identificações tem um alcance limitado dentro desta postura; somente ocorrem as identificações complementares, ou homólogo-onipotentes, já que o terapeuta se coloca em um locus idealizado: é a Mãe-Benevolente-Onipotente que tudo pode e tudo aguenta. A situação terapêutica é nitidamente assimétrica. Pode-se, facilmente, prever os inconvenientes desta situação; ela facilita a permanência do cliente um uma posição infantil regredida, a manutenção da idealização do terapeuta e a eternização da dependência-transferência. Idealização e regressão que, em um tratamento analítico adequado, são fenômenos produtivos e transitórios, podem sofrer uma transformação 'maligna' (Balint, 1968), dependendo da interação de três fatores: personalidade do cliente, técnica empregada e personalidade do terapeuta. Quanto mais o cliente tiver um certo montante de dificuldades na área de identificação/identidade, quanto mais a postura-continente for usada de forma rígida, e quanto mais o terapeuta tiver uma tendência para usar a idealização e a não revelação de si esmo como defesa, mais facilmente a relação terá destinos espúrios: ou o rompimento abrupto, ou a eternização da situação pseudo-terapêutica, ou a 'falsa cura'  através da identificação com a figura onipotente do terapeuta. Os perigos do uso de uma técnica analítica rígida foram expostos por Balint (1968). Para evitá-los, preconiza a criação de um ambiente terapêutico que permita ao paciente regredir o quanto necessite, e, em regredindo, utilizar o terapeuta como objeto primário indestrutível, aquele com quem poderá viver uma relação primitiva, na qual as comunicações não se realizam através das palavras, mas através dos atos e atitudes. Há, porém, de tomar cuidado com a regressão maligna. Diz Balint: "O problema real não está no gratificar ou frustrar o paciente regredido; a questão coloca-se na maneira pela qual a resposta do analista à regressão influenciará a relação paciente-analista e, portanto, o curso posterior do tratamento. Se as respostas do analista satisfazem as expectativas do paciente, criando a impressão no paciente de que o analista é competente, bordejando porém a onisciência e a onipotência, esta resposta será considerada arriscada e inconveniente; seria como incrementar a desigualdade entre paciente e analista o que pode levar à criação de um estado de dependência por exacerbação no paciente da falha básica." (Balint, 1968, p.168). "Tenho dois objetivos em mente quando escolho minha resposta. De um lado tento prevenir o desenvolvimento de relações indesejáveis, tais como as que ocorrem entre alguém inferiorizado ou frustrado por uma autoridade severa ou superior, que conhece melhor o que é certo, ou entre alguém fraco e que necessita de um suporte carinhoso, e uma autoridade generosa e benigna - tudo levando para o reforço da desigualdade entre sujeito e seu necessitado objeto. Por outro lado eu tento estabelecer uma relação na qual nenhum de nós seria todo-poderoso, na qual ambos admitem as suas limitações na esperança de que por este caminho uma colaboração frutífera possa estabelecer-se entre duas pessoas que não são fundamentalmente diferentes em importância, peso e poder." (Balint, 1968, p.171).
           Um terapeuta espontâneo que não se policie no sentido de guardar o incógnito ou de 'manter a pose', deixará surgir na sua conduta aquilo que lhe é peculiar e que o caracteriza como individuo e como humano; além disso aparecerão eventualmente dificuldades, falhas, hesitações, incertezas, insegurança, pois é também deste material que é constituído o homem. Isto permitirá ao cliente identificar-se com um humano inteiro, possibilitando um crescimento mais equilibrado e realístico. No entanto, em certas fases da terapia o cliente poderá necessitar da ilusão de um terapeuta onipotente. Aqui podemos recorrer a Winnicott. Ele nos fala de uma adaptação ativa às necessidades do cliente, realizada por um terapeuta suficientemente bom. "O comportamento do analista, representado pelo que chamei de 'setting', por ser suficientemente bom no que diz respeito à adaptação à necessidade, vai sendo gradualmente percebido pelo paciente como algo que faz nascer a esperança de que o self verdadeiro possa finalmente ser capaz de assumir os riscos que o início da experiência de viver implica." (Winnicott, 1955, p.486). Enquanto o cliente necessitar de um terapeuta idealizado, este espontânea e automaticamente cuidar-se-á o suficiente para manter a ilusão; logo, porém, que a necessidade de idealização se reduz o terapeuta afrouxa naturalmente a vigilância sobre si mesmo, o que inevitavelmente, o levará a se humanizar, a cometer erros, gafes, atos falhos, etc. O que eu gostaria de colocar em discussão neste momento, é a possibilidade do analista aceitar ser usado, desde o início, como figura idealizada onipotente no plano paratáxico (realidade fantasmática), sem deixar de se comportar como o ser humano que é. A força da necessidade de idealização é tal que as evidencias mais gritantes da realidade são ignoradas pelo cliente. A idealização só não ocorrerá se, à força desta necessidade imperiosa, o terapeuta opuser, por medo, defesa ou convicção dogmática, uma força contrária, uma força advinda de um desejo também imperioso de não ser usado como figura onipotente sequer no plano fantasmático. Mas, descartando esta hipótese, realizar-se-á uma idealização que será fantasmática, funcional e portanto terapêutica; a ancoragem na realidade objetiva facilitará a necessária desidealização progressiva. Esta só na se realizará se ao desejo de idealização do cliente acrescentar-se o desejo do terapeuta de manter-se onipotente aos olhos de seu paciente. Não podendo elaborar este desejo a díade imobilizar-se-á no dinamismo onipotência/impotência. O desejo do Terapeuta-Mãe é sempre imperativo e aliado ao desejo do paciente de ter um Protetor-Idealizado-Onipotente, dificultará a manifestação das forças de crescimento, mesmo quando esta hora for chegada.
        Façamos uma ligeira recapitulação esclarecedora. Foram exagerados certos aspectos da postura-continente a fim de ressaltar sua relação com certas consequências psíquicas indesejáveis. Minha intenção foi, porém, não apenas apontar para o mau uso desta postura, como também, em destacando certas características, tornar claro que, mesmo adequadamente usada, a postura-continente produz uma relação analista-analisando que certos pacientes, em geral os borderlines, tipo narcísico, não conseguem usar produtivamente. Balint (1968) preconiza, com pacientes difíceis, o estabelecimento de uma relação mais igualitária. Dá como exemplo um caso clínico no qual verbalizou a sua empatia com o desejo de proteção onipotente do cliente; falou de sua própria não-onipotência e dos malefícios de uma relação onipotência/impotência (p.170-171). Winnicott (1955) fala-nos de uma adaptação ativa às necessidades do cliente regredido e da utilização dos fracassos do terapeuta pelo cliente, afirmando que "as falhas devem ocorrer e que, na verdade, não se tenta fornecer uma adaptação perfeita." (p.487).  Eu mesmo sugeri acima que o analista tivesse em mente dois planos da relação: o paratáxico e o sintáxico, permitindo-se então uma conduta espontânea que por si mesma poderia, eventualmente, reduzir a assimetria da relação, podendo o cliente usá-la no processo de desidealização do analista. Outros terapeutas tentaram, em minha opinião, lidar com o problema da assimetria revelando verbalmente a sua contratransferência, possibilitando assim uma vivência de maior igualdade e permitindo uma identificação homóloga mais adequada. Não obstante, o passo decisivo é dado quando passamos do comportamento interpretativo ao comportamento covivencial. Balint e Winnicott realizaram esta passagem, mantendo a postura-continente. A postura-continente/comportamento covivencial  pode ser considerada como uma transição para o comportamento covivencial (por assim dizer) máximo, o que se dará na postura simbionte. Em que difere a postura-continente no comportamento interpretativo, da postura-continente no comportamento covivencial? Na postura-continente/comportamento interpretativo, o terapeuta ocupa-se mais com as interpretações do que com o seu funcionamento como continente. Ele simplesmente se coloca como continente que lá está, e a partir desta posição estrutura a sessão em torno da intervenção interpretativa. É verdade que a continência exige cuidados e flexibilidade, mas não é o que está em primeiro plano nas cogitações do terapeuta; sua prioridade é entender o que está acontecendo, especialmente em termos de vivências pré-edipícas, para poder formular uma interpretação que facilite o insight do paciente. Para entender, interpretar e facilitar insight, necessita da postura-continente; então, ela será adotada. Já na postura-continente/comportamento covivencial, ocorre uma mudança de perspectiva. Winnicott cuida de manter um ambiente suficientemente bom para o desenvolvimento do cliente. "No trabalho que estou descrevendo o setting torna-se mais importante que a interpretação. A ênfase passa de um fenômeno para o outro." (Winnicott, 1955, p.486). Balint (1968) também dá o mesmo passo decisivo. Para ele existem dois agentes terapêuticos - a interpretação e a relação de objeto(p.173) "...em certos períodos do tratamento, criar e manter uma relação adequada de trabalho, particularmente com um paciente em regressão, é talvez mais importante do que dar interpretações corretas." (Balint, 1968, p.160). "No meu esforço para superar estas dificuldades dos últimos anos, tenho experimentado uma técnica que permite ao paciente experimentar uma relação de duas pessoas a qual não pode, não necessita e talvez não deva ser expressa em palavras, porém, por vezes, meramente por aquilo que costumeiramente denominamos 'acting-out' na situação analítica," (Balint, 1968, p.174)." Estamos, pois, dentro de um comportamento covivencial ; não, porém, de um covivencial máximo pois a postura proposta por Balint ainda é a continente: "o analista deve funcionar durante estes períodos como um provedor de tempo e ambiente. Isto não significa que ele tem a obrigação de compensar as primitivas privações do paciente dando-lhe mais cuidados, amor, afeição do que os pais originalmente lhe deram (mesmo se tentar quase certamente falhará). O que o analista deve prover - e se possível, somente durante as sessões regulares - é suficiente período de tempo livre de tentações, estímulos e demandas extrínsecas, incluindo-se aquelas que se originam dele próprio (o analista)." (Balint, 1968, p.179-180).  O analisando encontrará no analista uma espécie de refúgio, de iglu vivo onde quietamente poderá se refazer.
 

IV A

A postura simbionte - comportamento covivencial  (continua)





          
                                   

 



2 comentários:

  1. Nahman, meus parabéns a você por esta sua série de artigos importantíssima. Você traça uma linha reta entre a psicanálise mais "objetiva" (que só é útil se a autoridade do analista for um fator central) e a psicanálise mais VIVA, mais utilizada atualmente. Gostei demais. Grande abraço.

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