Almodovar
e Bertolucci são cineastas visionários. O que não significa que devamos nos
descartar de suas alucinações fílmicas. Pelo contrário, respeitando as
proporções, podemos colocá-los na série de fantásticos visionários como
Nietzsche, Van Gogh, Marx, Freud e outros. Fica a lição de que a função das
visões antecipatórias não é cumprirem-se integralmente, mas sim indicar uma
direção de pensamento/realização, influindo na própria afeiçoamento desta
direção, apresentando pois um valor de idealidade inalcançácel e um valor
pragmático de combate.
O
filme de Almodovar explicita a sua questão no próprio título: “A lei do
desejo”. Embora de um modo diferente, esta é também a questão de Bertolucci. Ambos
cinematografam os seus próprios desejos de ultrapassamento das barreiras
impedientes da renovação dos avatares do desejo. No mundo ficcional fílmico,
estas barreiras, embora presentes, são transpostas, para alegria da imaginação
daqueles que comungam do desejo de um mundo aberto a todas as realizações
ecologicamente singulares.
As sensíveis antenas destes artistas captam as
múltiplas direções dos ventos de transformação. Mesmo que estranhemos tais
direções, trata-se de uma estranheza que entranha um familiar, pois estas
mesmas antenas existem em todos nós, mais ou menos ocultas, recolhidas,
desativadas seja por desatenção, medo, insuficiente élan, ou o que mais. Muito
ganharíamos com a ativação e reativação destes radares. E esta, creio eu, é uma
das funções da obra de arte. Veremos, pois o que estes dois realizadores de
cinema podem despertar em nós.
“A
lei do desejo” de Pedro Almodovar contracena com a família tradicional,
composta de marido, esposa e filhos; “Beleza roubada” de Bertolucci tem por interlocução
a setorização impermeável e dura das várias manifestações do afeto:
sexualidade, amorosidade, afeição, paixão, sedução, encantamento, jogo amoroso.
Esta setorização impede o deslizamento fluido, a mistura líquida, o
entrelaçamento, o entremeiamento destes aspectos afetivos, situação da qual
Lucy escapa inserindo-se no devir.
Na
“Lei do desejo”, realizado em 1986, o personagem central é Pablo, diretor de
cinema e homossexual. Tem um amante, Juan, e está sendo assediado por Antônio
que acaba por se tornar seu amante. Seus sentimentos por ambos e por cada um
deles, são deslizantes, obedecem à lei do desejo, à mutável cartografia dos
afetos. Mudam e se transformam como muda o tempo. Sua paixão escorrega de um
para outro. Estas manifestações amorosas\sexuais de sua afetividade, marcadas
por uma variação contínua, nós as podemos colocar, apesar de sua importância,
na periferia de sua vida, quando consideramos um outro aspecto de seu viver:
refiro-me aos afetos não-sexualizados de suas relações familiares. Aqui está a
maior originalidade do filme. Pedro Almodovar constrói uma família
absolutamente insólita, composta por um homossexual, por sua irmã trans-sexual
(originalmente um irmão) e por uma menina de 11 anos. Apesar de sua estranha
constituição, é uma família amorosa ligada por fortes laços de afeto,
companheirismo, compreensão e apoio mútuo. A menina, tempos atrás, tinha sido deixada pela mãe com este
peculiar casal. Há uma cena em que a mãe verdadeira vem buscar a filha, e esta
prefere, apesar da insistência autoritária da mãe, continuar com sua família adotada
que, pelas qualidades já expostas, tornou-se sua família desejada, sua
verdadeira família. O exagero na construção dos personagens, onde se inclui uma
relação incestuosa prévia do irmão trans-sexual com o pai, é exemplar da liberdade imperativa (aporia) pós-moderna do
desejo, e dos possíveis direcionamentos a serem dados à lei do desejo. A chance
de alcançar um equilíbrio, capaz de tornar a vida mais leve, torna-se maior
quanto temos à nossa disposição várias formas de organizar a vida e os afetos.
É interessante observar os caminhos de realização e equilibração de afetos
encontrados por Pablo: parte de sua amorosidade, a não sexualizada, está
colocada na família, onde o pêndulo tende mais para a estabilidade, e parte
colocada na sua relação com os amantes, onde o pêndulo inclina-se para o
deslizamento. Pablo realizou uma dissociação entre o afeto tranquilo, seguro,
estável, previsível, colocando-o na extraordinária
família que se constituiu, e a paixão tórrida, instável e aventureira, ligada
ao inesperado, à surpresa, colocada nos seus amores homossexuais, que embora
indispensáveis se apresentam mais periféricos que centrais. Este o modo
singular de Pablo de distribuir seus afetos, de tentar realizar a façanha de
ser e estar-no-mundo em equilíbrio possível. A amorosidade que numa sociedade tradicional tem por ideal sua
concentração no casal e na família, um ideal dificilmente realizável,
apresenta-se em Pablo dicotomizado entre
uma família esquisita, e dois (que poderiam ser mais) homossexuais. Este foi o
seu modo de distribuir seu desejo, seu afeto, sua amorosidade, preservando ao
mesmo tempo um equilíbrio e uma possibilidade de realização no seu meio social.
Teríamos aí razoavelmente respeitadas as singularidades e as possibilidades de
convivência social.
O
enamoramento, periférico no filme de Almodovar, torna-se vital, difuso,
penetrante, insinuante, em “Beleza roubada” de Bertolucci. Nesta película,
realizada em 1996, Lucy, uma jovem americana de 19 anos, virgem, volta, após 4
anos, a uma região campestre da Itália à procura de um amor de namorado e de um
amor de pai, pois lá ela tinha sido tocada em seu coração por um mancebo e lá
tinha sido concebida 19 anos atrás. Lá ela se depara com muitos homens e
mulheres e se coloca aberta ao desenvolvimento de toda e qualquer relação
afetiva, tendo como limite apenas o seu desejo, as suas singularidades. Com
isso, em suas diversas relações, surgem variados afetos: carinhosos, sensuais,
ternos, lúdicos, sexuais, etc., apresentando cada relação uma mistura
particular desses vários componentes e de outros indizíveis. Finalmente ela
encontra o seu pai e também aquele que será o seu primeiro amor, o jovem que a
inicia e se inicia na sexualidade terna, apaixonada e amorosa, um homem que se
sente ligado a ela por laços que ultrapassam o acontecimento sexual. Em sua
maior profundidade, lá onde as diversas correntes subterrâneas se confundem,
estes dois acontecimentos - encontro com o pai e encontro com o amor pleno - se entrelaçam, não podendo
existir um sem o outro. É preciso que o pai reconheça na filha uma
feminilidade, que doe esta feminilidade ao mundo, para que ela possa exercê-la.
Torna-se necessária assim uma ambigüidade, onde a sexualidade latentemente
lateja, fazendo-se presente sem se
explicitar. Lembremo-nos, a propósito de duas cenas: na primeira, Lucy, na
expectativa de sua primeira relação sexual, passa pelo quarto de Alex, um
doente terminal, um homem que assumira, ao conhecê-la, um papel sedutor e
iniciador; não uma sedução e iniciação dela para si - sua condição física
tornava-o incapacitado para isso - mas de iniciação dela para a vida. Ele
assume o papel de mestre do amor e da vida. É como se, de alguma maneira, ele
dissesse que gostaria de ser aquele a lhe abrir os portais do mundo, do amor,
da sexualidade, mas, em não podendo ele próprio, a ajudaria a encontrar este
caminho de expansão. Por isso, Lucy o visita no momento que deveria anteceder a
sua primeira relação sexual que, finalmente, não se realiza. Naquele momento
Alex, ciumento e invejoso, mostra-se reticente; porém, mais tarde, quando de
seu transporte para o hospital, ao sair do cenário do filme, despedindo-se de
Lucy e, provavelmente, da vida, ele explicitamente aprova a relação sexual que
julgara ter acontecido, não deixando que Lucy esclareça o que realmente
acontecera. Agora, ela traz dentro de si, o olhar permissivo desse homem que
não é seu pai, mas que, sem dúvida, está exercendo a função paterna de
reconhecimento de sua sexualidade, e de doação dessa sexualidade à vida.
Em
outra cena do filme, aquele que será posteriormente reconhecido como pai, está
exercendo as funções de pintor, tendo como modelo aquela que será, futuramente,
reconhecida como filha. Dentro desta atmosfera artística o pai aproxima-se da
filha, olha-a intensamente quase encostando o seu rosto e os seus lábios nos
dela. A jovem sustenta o olhar sem escape, devolvendo-o na mesma medida, numa
tensa e vibrante expectativa do que virá a seguir. Uma corrente intensiva,
carregada de afetos, circula entre pai e filha, fazendo crescer a energia
erótica que, finalmente, tem seu descenso no desnudamento de um dos seios da filha. O pai afasta-se para
pintar o quadro que agora, certamente, estará pleno da sensualidade e
sexualidade explosiva da jovem. Esta cena é emblemática da disposição de Lucy
em viver intensivamente todas as experiências possíveis de afeto, sem
pré-determinações do que pode e do que não pode ser feito. Ela encontra-se
aberta para toda espécie de afeto, dá-se a liberdade de experimentar, até o
limite de seu desejo, tudo o que possa surgir em matéria de amor, sensualidade,
sexualidade, carinho, ternura, etc. Abertura que poderíamos ver como um
acontecimento do milênio que está ali em uma das prováveis esquinas, à nossa espera.
Podemos
confrontar esta atitude com aquela prevalecente em uma subjetividade que a
precede e que, ao mesmo tempo, lhe é contemporânea, uma subjetividade
clássica/moderna e que no filme está representada por Niccolo, a quem Lucy havia
beijado quando de sua primeira estadia no sítio aos 15 anos, e com quem sonhara
nos quatro anos seguintes, antes de desiludir-se. Também Richard, Miranda, e a
cena das prostitutas na estrada vistas ao longe pela câmera, são conotativas da
subjetividade clássica/moderna. A atitude do homem no clássico e moderno dá-se
em uma linha curta percorrida pela “cantada” ou, alternativamente, pelo
“respeito”, e que tem em uma de suas extremidades a “trepada” e, na outra, a
dessexualização da mulher. Ou a mulher não tinha sexo ou então tratava-se de
uma mulher para ser “comida”. Na contemporaneidade observa-se uma outra série,
justamente a série percorrida por Lucy. O homem se posiciona na linha do afeto,
uma linha longa que comporta amizade, compreensão, companheirismo e também
sexo. Tentarei me explicar melhor. Nas relações atuais é possível um homem ter
afeto por uma mulher e manifestá-lo sem que esteja implicada a idéia de uma
futura relação sexual. Melhorando: é possível, hoje em dia, ter um
comportamento afetivo com uma mulher sem que este comportamento afetivo seja
encarado como uma “cantada”. Tal comportamento afetivo está aberto dos dois
lados, tanto para o lado da amizade quanto para o lado do amor sexualizado. Não
há uma proibição nem de uma coisa nem de outra e, eventualmente, a relação pode
sofrer variações. Trata-se de uma outra série, diferente da anterior. Na
anterior só havia duas possibilidades: “respeito” que implicava em uma
dessexualização absoluta (mulher de amigo é homem) ou “cantada”. Era uma linha
curta limitada por dois extremos absolutos que, por assim dizer, davam fim
abrupto, nas duas extremidades, à série. Na série da pós-modernidade temos uma
linha de afeto longa, suportando gradações sutis, múltiplas e reversíveis, o
que justamente a encomprida. Uma série a ser percorrida em todas as direções e
que acumula, de diferentes maneiras, os pontos percorridos em uma espessura de
relação. Já não se trata de cantada ou respeito, mas de relação humana entre
dois seres abertos à vida e aos afetos. Teremos então uma série que passará
pelo carinho, atenção, papo, amizade, amor, sensualidade, sexualidade,
entendimento, compreensão, aliança, cumplicidade, compartilhamento. Uma série,
que, à diferença da outra, comporta ambigüidades. Por esta razão, um casal
amoroso que conserve mais ou menos intactos o modo infantil exclusivista de
relacionamento - em outras palavras, um casal que, por ter colocado na sua
relação um narcisismo excessivo tenha um ciúme exacerbado, terá dificuldade em
admitir o trânsito do parceiro por essa série ambígua. Ambígua porque ela
comporta toda a espécie de afeto, estando alguns explícitos e outros apenas
insinuados, diluídos ou velados. Os seres humanos do futuro terão de lidar com
estes sentimentos surgidos a partir dessa nova maneira de se colocar na linha
do afeto. Não estou me referindo a uma liberdade sexual que levaria todos a
transar com todos, mas a uma liberdade amorosa que admite a possibilidade de
qualquer acontecimento afetivo, inclusive sexual, mesmo que ele nunca ocorra.
Estou aqui opondo uma “moda” - a transa de todos com todos como modelo -, ao
desejo de se relacionar afetivamente com alguém, onde a relação sexual não é
obrigatória e poderá ou não acontecer. O componente sexual que existe nas
mistura de afetos que é Lucy nos é mostrada quando, no início do filme a câmera
surpreende sua mão repousando próxima ao seu sexo, e mais tarde, quando Lucy se
debate voluptuosamente na solidão noturna de seu quarto e ainda, na sua busca
vigil desejante ao mesmo tempo cega e lúcida de algo que ela sabe e não sabe o
que é, de algo que tem a ver com o pai e com o namorado, mas que ultrapassa a
ambos.
A
fragmentação inicial das imagens realizada por cortes rápidos da câmera, dá um
significado especial à sensualidade que, desde sua abertura, percorre todo o
filme, Esta fragmentação aparece no percurso que ela realiza dos Estados
Unidos, seu país de origem, ao sítio bucólico no interior da Itália. Rápidas
imagens logo substituídas por outros, nos remetem a um estilhaçamento do tempo,
lançando-nos na pontualidade do devir. E é justamente este deixar-se levar pelo
devir que possibilita uma integralidade de sentimento/pensamento/ação. O
decidido mergulho no devir, o seu deixar-se levar pelas ondas fortuitas ou
quase-fortuitas dos acontecimentos internos e externos em interação, a abertura
de Lucy permitiu-lhe uma autenticidade que dificilmente existiria se ela se
propusesse calculadamente a alguma coisa. Havia um sentido no seu
comportamento: encontrar. Este sentido estava preenchido pelo encontrar o pai e
encontrar o seu primeiro amor, mas não se constituia em um plano, em um
cálculo, não perturbando pois a fluidez
do devir. Creio que o diretor expressa
bem o paradoxo devir/sentido/não-cálculo quando coloca um fotógrafo
desconhecido - que mais tarde aparecerá no sítio revelando-se um amigo da mãe
de Lucy - fragmentando fotograficamente momentos vividos por Lucy na viagem e
oferecendo-os a ela sem nada pedir em troca. Temos aí representada a
possibilidade de uma acumulação de momentos pontuais do devir reunindo-os em
uma série que lhes dá sentido, impedindo que eles desapareçam no vazio. Não há
uma raiz prendendo-a a coisa nenhuma, mas também sua experiência não se perde
em uma dispersão sem sentido. Ao contrário, sua procura rizomática confere um
sentido ao seu devir, tornando-o um devir de eterno retorno, onde cada momento
é significativo por estar gravado para sempre. É desta maneira que podemos
interpretar a fixação fotográfica de pontualidades da viagem. Lucy, líquida e
transparentemente aberta para qualquer espécie de acontecimento e sentimento,
aberta a tudo e a todos, pode assim integrar pensamento, sentimento e ação, num
gesto unificado de autenticidade monolítica. Esta autenticidade leva-a a
recusar algumas das relações sexuais e afetivas propostas e a aceitar aquelas
que se coadunavam com o seu desejo, com as suas singularidades, com o seu
devir. Nas suas relações com o moribundo - pai adotado, e com o pai biológico,
nós a encontramos percorrendo a linha longa do afeto em cuja espessura não
explícita encontram-se a sensualidade e a sexualidade, que por vezes se
insinuam no comportamento manifesto de um modo vaporoso e sutil.
Niccolo,
o rapaz com quem Lucy havia sonhado por quatro anos, revelou-se um conquistador
inveterado, manifestando um desejo apenas epidérmico pela jovem. Aceito até um
certo limite mas, em última instância, repelido, desisitiu dela e foi exercer
sua atividade donjuanesca em outro terreiro. Podemos tomar este rapaz como
exemplo da linha curta e dura em contraste com a linha suave e longa do afeto
que a protagonista nos presenteia. A primeira pode ser relacionada a
identificações permanentes, a identidades fixas e a segunda à identificação
contínua, dual-porosa, uma identificação que resulta em uma identidade fluida,
mutável. A primeira ligada a modelos de comportamento e a segunda advinda da
atividade criativa de um verdadeiro self que busca o seu lugar afetivo no
mundo, sem prévias determinações. Digo, de propósito, um lugar afetivo, para
contrastá-lo com um lugar de dever. Houve um tempo em que não se acreditava no
afeto como capaz de participar da organização do mundo social; ao contrário, o
fluir do afeto seria desorganizador enquanto que o carimbo do dever, este sim,
marcaria positivamente a organização social. Hoje, cada vez mais, acredita-se
na sabedoria da espontaneidade afetiva. É claro que esta espontaneidade deve
ocorrer em um contexto mais amplo, um contexto que inclui a subjetividade do
outro e a subjetividade circulante no social e que não exclui o contrato.
Voltemos
à linha curta e dura do afeto. O que é, nas relações amorosas, ser homem no
clássico/moderno? Respeitar a mulher dos amigos e conquistar as outras
mulheres. Dessexualizar a mulher proibida. Sexualizar obrigatoriamente todas as
outras mulheres. Não entra em questão, pelo menos não prioritariamente, a
atração pessoal e sexual. Se era mulher, e se não era mulher de amigo, então
era para ser comida. Quanto à mulher ela tinha de guardar uma compustura, um
comportamento desestimulante da sexualidade. Tinha de ser fiel ao seu marido e
manter sua sexualidade, mesmo na intimidade do quarto, em limites de decência.
Nada de grandes entusiasmos ou de grandes criatividades. A mulher tinha de ser
discreta em suas manifestações sexuais. É claro que este é um modelo que tem
tudo para ser transgredido pois ele impõe freios a uma força muito maior que
atua em homens e mulheres. Uma força que impele os seres humanos para o
relacionamento, para o reconhecimento, para a fuga da solidão, para a
realização de suas potencialidades, para a aventura, para a abertura, para a
novidade, para a renovação, para a curiosidade.
O
homem pós-moderno - o borderline “normal” - tem mais probabilidades de
transitar na linha longa e suave do afeto. Na atualidade o homem, assim como a
mulher, deixam de ser Homem (ou Mulher) para serem Pessoa. Uma pessoa que,
desconsiderando modelos sociais, pode deixar aparecer o masculino ou o feminino
que irrompe de seu verdadeiro self, fazendo parte de seu conjunto pessoa. Uma
pessoa que se relaciona com outras pessoas. Uma pessoa que ao se relacionar com
alguém do sexo oposto (em se tratando de um heterossexual) ou do mesmo sexo (em
se tratando de homossexual) poderá acrescentar mais ingredientes à relação: a
sensualidade e a sexualidade. Uma pessoa que ao se relacionar com outra pessoa
pode fazê-lo de maneira ambígua. Uma pessoa heterossexual que ao se relacionar
com alguém do mesmo sexo poderia aceitar o aparecimento de afetos e afetações
homossexuais que não precisariam obrigatoriamente se realizar, permanecendo
como elemento oculto ou recatado da mescla. Teríamos uma situação semelhante a
algumas situações transferenciais em análise, onde a sensualidade e a
sexualidade estão presentes de uma forma não explícita, impelindo a relação
para o desdobramento. No cotidiano, certamente isso também acontece, assim como
também acontecia na época clássica/moderna, não sendo, porém, reconhecido nem
aceito pelas pessoas e, por isso mesmo, produzindo uma culpa inconsciente.
Lucy, a jovem do filme, uma mulher em estado de identificação dual-porosa,
deixa aberta a possibilidade de uma realização sensual/amorosa/sexual mesmo
quando esta nunca virá a se concretizar. É algo que fica como pano de fundo e
que contribui para a riqueza da ambigüidade. Não se trata mais de uma Mulher,
que tem um modelo de comportamento, mas de uma pessoa sujeita e aberta a todas
as eventualidades, e que, a priori, não fecha nenhuma porta de relacionamento.
Nahman Armony
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