O AMOR E AS DIFERENÇAS DE MENTALIDADE


Nós não nascemos com um modo de pensar e de agir estabelecido. Ele vai se formando, aos poucos, desde nossa infância, mas, uma vez consolidado, não é fácil alterá-lo. Quando entramos num relacionamento, porém, esse jeito de ser pode entrar em choque com o do parceiro. Aí, se amarmos de verdade, precisaremos admitir a possibilidade de promover mudanças. 

Assisti recentemente ao drama Quando um Homem Ama uma Mulher (1994), do diretor mexicano Luis Mandoki (53). O filme fala de um amor sólido, substantivo e perseverante; tão perseverante que resiste a profundas diferenças de mentalidade. Fala de um casamento que quase se desfaz, mas retoma a vitalidade quando brechas no psiquismo dos envolvidos permitem a compreensão mútua.
Se ficarmos atentos não só às linhas mas também às entrelinhas da história, dela tiraremos bom proveito. Desde o início, um férreo liame une Alice e Michael. Há muito amor circulando entre os dois e, mais tarde, entre os quatro, quando um par de filhos vem se acrescentar à família. Uma tragédia, porém, estava à espreita. Alice retorna ao alcoolismo e afasta-se do lar. Mais tarde, volta e tenta se readaptar à vida familiar, ao mesmo tempo em que freqüenta os Alcoólicos Anônimos.
Aqui já se coloca uma interrogação: se a família era tão feliz, como pôde o alcoolismo se insinuar nessa liga amorosa? Neste ponto o filme nos fornece pistas para começarmos a entender como um casal que se ama, que ama os filhos e quer preservar o casamento pode ser corroído a partir de diferenças de mentalidade. Uma dica dessa dinâmica nos é dada quando Alice aponta a satisfação que o marido tira de se sentir superior a uma mulher  alcoólatra, fraca e problemática; esta situação aparece também no trato com os filhos: o pai interfere na relação da mãe com as crianças, tirando sua autoridade e deixando-a em segundo plano. Ela se torna ‘fraca’ através do alcoolismo possivelmente para suportar a pretensa superioridade do marido e tornar-se realmente frágil para ocupar o lugar de inferioridade que ele lhe indicava.

  • Para Michael estar em posição de superioridade na família  é uma situação natural. Ele é o chefe, o orientador, o dono do saber; a esposa deve aceitar sua superioridade e seguir seus preceitos. Um outro aspecto menos evidente que aparece é a excessiva objetividade do marido revelada numa frase, quando tenta ajudá-la: “Eu só posso consertar se souber o defeito”. Para ele, o alcoolismo da esposa é um defeito a ser consertado -- e terá certamente uma solução, desde que se siga a direção certa. Essa direção certa e única, que desconsidera as complexidades do psiquismo, é ele o único quem conhece. O fato de a mulher não seguir seus preceitos, ou, pior, de fracassar ao segui-los, faz com que ele se sinta desprestigiado, diminuído na sua condição de mentor da família.
Teria o amor do casal terminado? Não é o caso. O sentimento de ambos era tão sólido que, ao final, eles se reaproximam, reavivando o afeto que surdamente habitava seus corações. Isso, no entanto, exige um grande esforço. Dele, no sentido de engolir seu orgulho machista e passar a freqüentar um grupo de parentes de vítimas do alcoolismo. Mas não é fácil promover modificações em um modo de ser que desde muito cedo foi-lhe imposto e se consolidou. A tomada de contato com a mentalidade do grupo provoca uma espécie de abalo, de terremoto na personalidade. Ele abandona o primeiro encontro. Porém, o desejo de poder viver o amor pela mulher que escolheu o leva a persistir. Uma outra mentalidade vai se formando, uma mentalidade na qual cabe a possibilidade de não ser ele o dono do saber, de não ter ele sempre a obrigação de tudo resolver e, além disso, a percepção de que não basta, para enfrentar os problemas, definir um plano objetivo e segui-lo até chegar a um resultado. Michael começa a entender que a mente humana é extremamente complexa e que seus caminhos são tortuosos, inesperados e oscilantes. Alice, por sua vez, entende que a incompreensão do marido não vinha da falta de amor mas de uma educação machista. A partir daí, um recomeço tornou-se possível.

                        Nahman Armony

            Primeira publicação na revista CARAS.


Nenhum comentário:

Postar um comentário