VAN GOGH


                             Passado um século da morte de Van Gogh podemos hoje reconhecer nele um homem e artista extraordinário e profético, cuja vida e obra foram uma antecipação das questões, caminhos e conflitos do homem atual. Durante sua atormentada existência optou por manter a sua singularidade contra tudo e contra todos. Enfrentou pai, família, marchands e absolutamente não se dobrou a nenhum modelo social.  Foi sempre fiel a si mesmo fosse como pintor, como estudante, como missionário, como amante. E mais do que isto teve a coragem de assumir uma posição ideológica que podemos chamar de panteísta, numa época em que reinavam ou o Deus externalizado e pessoalizado, ou o racionalismo científico triunfante na sua certeza de possuir e vir a possuir, através de seus métodos, a verdade do universo e com isto o bem-estar da humanidade. Seus quadros eram uma negação desta Weltanschauung dominante, com sua ênfase nas cores, na expressividade, na fusão homem/natureza. Talvez por não ter sido compreendido e aceito pela sociedade, por ter sido espiritualmente excluído dela, tenha se suicidado, excluindo-se em corpo também, quem sabe coerente com sua forma de sentir unitária, onde alma e corpo não podiam ser separados.
          Não foi sem conflitos internos que Van Gogh construiu sua fortaleza espiritual. Suas primeiras cartas ao irmão Théo revelam um jovem confuso, desejoso de seguir os caminhos convencionais de inserção na sociedade, aceitando a sua ideologia, mas já deixando transparecer dúvidas. Em janeiro de 1873, aos 19 anos, já empregado há mais de três anos numa filial da Casa Goupil, uma galeria de arte, escreve para seu irmão Théo: “Meu ano novo começou bem. Recebi um aumento de dez florins ... e me concederam um prêmio de 50 florins acima do mercado. Não é magnífico? Eu espero poder, desta maneira, prover as minhas próprias necessidades. Estou muito contente que você esteja trabalhando na mesma firma. É uma bela firma onde, quanto mais se trabalha, mais se sente a ambição”(p.23)[1]. A carta tem alguma ambigüidade. Van Gogh não fala de sua ambição diretamente, mas de uma ambição que parece vir da firma. Como se a ambição não fosse própria, mas um modelo imposto. Seria esta ambigüidade um prenúncio do conflito entre afirmar a singularidade x dobrar-se às convenções? Extrato da carta de três de abril de 1878 (ocasião em que Vincent está estudando para pastor): “....quanto mais nos ativermos a regras fixas, mais firme se tornará o caráter, sem que para isto  tenhamos de nos tornar limitados....E mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstâncias mais favoráveis, é preciso conservar algo do caráter original de um Robinson Crusoé ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultivá-la[2](p.28/9).  Nesta carta em tom de prédica (portanto com um acento superegóico), Vincent procura compatibilizar o homem das "regras fixas" com o "homem da natureza", uma vida calcada no modelo social vigente com uma vida livre e criativa. Está com 25 anos e pensa em ser pastor como o pai. Já em julho de 1880 (Van Gogh portanto tem 27 anos e decide ser pintor após um período de errância física e mental) a separação entre "regras de sociedade" e "homem natural" está mais definida: “Há uma velha escola acadêmica muitas vezes execrável, tirânica, a abominação da desolação, enfim, homens que têm uma espécie de couraça, uma armadura de aço de preconceitos e convenções; estes, quando estão à testa dos negócios, dispõem dos cargos e, por meios indiretos, buscam manter seus protegidos e excluir os homens naturais”(p.44)[3]. É evidente que Van Gogh se inclui entre os homens naturais. Nesta ocasião ele havia sido destituído de sua condição de missionário por não agir de acordo com os preceitos da igreja. Com perspicácia Van Gogh prossegue nesta carta: “Agora, uma das causas pelas quais eu estou agora deslocado - e por que durante tantos anos estive deslocado - é simplesmente porque tenho idéias diferentes das desses senhores que dão cargos àqueles que pensam como eles. Não se trata de uma simples questão de asseio, como hipocritamente me censuraram, é uma questão mais séria que isto, posso lhe garantir”[4](p.44). Van Gogh toma consciência dos distúrbios e reações que sua singularidade provoca no mundo. Sua valorização e expressão de sentimentos, sua desconfiança na razão pura, seu panteísmo, sua crença no amor, na intuição, na humildade, na sinceridade, sua afirmação de singularidade nem competitiva nem rebelde, sua ausência de preconceitos, seu desprezo pelas convenções e pelos valores sociais em vigor, ameaçavam os "homens de preconceitos" da sociedade da época que então o ataca ou o ignora. Daí Antonin Artaud dizer que Van Gogh foi um "suicidado da sociedade".
          Van Gogh afirma e reafirma uma singularidade que se apóia e está em continuidade com os seus mais antigos sentimentos, valores e pensamentos. Ainda na carta anterior respondendo ao irmão que lhe escrevera "desde então você mudou muito, você já não é mais o mesmo", esclarece: ... “ o que mudou é que minha vida era então menos difícil, e meu futuro aparentemente menos sombrio; mas quanto ao meu íntimo, quanto à minha maneira de ver e de pensar, nada disto mudou, e se de fato houvesse alguma mudança, é que agora eu penso e acredito e amo mais seriamente aquilo que na época eu também já pensava, acreditava e amava”[5](julho de 1880). Esta fidelidade aos valores mais antigos remete-nos à Personificação da Mãe, enquanto que seu desejo de se inserir no mundo adulto refere-o à Personificação do Pai. Porém Van Gogh só admite entrar no social conservando suas crenças, sentimentos e pensamentos mais antigos, a sua singularidade, a sua vinculação à Personificação da Mãe. Temos disto uma confirmação em várias outras de suas manifestações. Carta de novembro de 1881: “Você, você é capaz de me compreender quando afirmo que é preciso amor para trabalhar e para se tornar um artista, um artista que procura colocar sentimento na sua obra: é preciso primeiro sentir-se a si próprio e viver com seu coração[6](p.138). A vinculação à Personificação da Mãe, ou, o que é o mesmo, a manutenção da função-Mãe faz-se presente nesta carta na continuidade amor-trabalho, na precedência que tem o "sentir-se a si próprio" em relação a sentir o mundo e finalmente no viver o mundo "com o seu coração", com sua singularidade, seus sentimentos mais verdadeiros e não seguindo modelos prévios. Na carta de 23 de novembro de 1881 (tinha então 28 anos, estava morando com os pais, já escolhera ser um pintor, e está em conflito com os pais a este respeito) ele reitera mais enfaticamente estas idéias: “Algumas vezes eu estou convencido que você deve dirigir ao presente sua atenção, a melhor parte de sua atenção, a mais condensada, sobre esta força vital que ainda não está despertada em você: o Amor. Ela é em verdade a mais poderosa de todas as forças, visto que ela te torna apenas aparentemente dependente; a verdade, é que a franqueza verdadeira, a liberdade verdadeira, a independência verdadeira existem somente através desta força. é o amor que precisa nosso sentimento de dever e define claramente nosso papel”[7](p.144). A menção de Van Gogh ao dever e ao amor permite-nos buscar um contraponto destes sentimentos no complexo de Édipo da teoria freudiana. Porém, antes de fazê-lo, torna-se necessário um esclarecimento: as obras dos grandes criadores podem ser lidas em várias perspectivas: uma delas representa, ao mesmo tempo, uma denúncia (ou um retrato) das ideologias vigentes, e um apontamento, a partir destas revelações, de linhas de ultrapassagem desta ideologia. é por este ângulo, como testemunha genial de uma época, que citaremos Freud. Sua escolha da tragédia de Sófocles para a apresentação do complexo de Édipo, sua concepção da origem da sociedade organizada exposta em Totem e Tabu, a forma de instalação do superego no menino, são reveladoras da violência de uma sociedade patriarcal no apogeu de sua ideologia fáustica.  É justamente esta teoria reveladora que, adequadamente usada, permite um trabalho clínico de liberação individual e propicia desdobramentos teóricos como os de Balint, Winnicott,  Searles e outros. Freud foi um transformador, e portanto um homem de transição; como tal tinha seus pés enraizados numa episteme ocidental platônico-cartesiana, mas empurrava com as mãos as relações homem/mundo em direções que retomadas por psicanalistas modernos levaram da episteme da representação para a episteme da força pulsional e, mais ainda, para uma episteme onde a identificação-empatia-intuição têm  um papel preponderante, produzindo transformações teóricas que recusam a violência da sociedade tecno-consumista e passam a refletir um crescente desejo de equilíbrio ecológico. Feitas estas ressalvas podemos retomar o fio no ponto em que o deixamos. Na carta de Van Gogh o dever aparece como tributário do amor. Freud em "A dissolução do complexo de Édipo” (vol.19, pág.221) escreve: “A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do pai(dever) e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal”[8](amor). De um lado a autoridade/dever na identificação com o Pai e de outro o abandonado amor pela Mãe. Em "O problema econômico do masoquismo” (vol.19, pág.173) Freud escreve: “Agora o superego, a consciência moral eficaz dentro dele, pode tornar-se duro, cruel, inexorável para com o ego a quem tutela. Desse modo, o Imperativo Categórico de Kant é a herança direta do Complexo de Édipo”[9]. O Imperativo Categórico implica em uma obrigação, em um Dever imediato, incondicionado e absoluto, excluindo qualquer outro sentimento ou inclinação. Exclui, portanto o amor. Este é o Dever do Imperativo Categórico, herdeiro do Complexo de Édipo. Van Gogh propõe um revolvimento. O Dever já não seria em si mesmo; o dever estaria no âmbito do amor. Não mais se sustentaria a dicotomia amor/dever, o dever referido à Personificação do Pai, e o amor à Personificação da Mãe. Seria através do amor, da Personificação da Mãe que se acederia ao dever e ao trabalho, ao social. Não haveria, assim, uma quebra de continuidade entre a dinâmica da relação dual primeva e a dinâmica triádica posterior que, ao invés de sepultar a primeira a ela suavemente se integraria. (As aproximações que estabeleço entre as idéias de Freud e Sullivan têm a ver com uma certa concepção da epistemologia da psicanálise que exponho especialmente em meu artigo “Ser ou não Ser?”[10]). Deixarei, provisoriamente, esta questão por aqui para retomá-la mais adiante. Continuemos nossa exegese das Personificações nas cartas de Van Gogh a Théo. Entre abril e maio de 1872, em carta não datada, escreve(pág. 79 da edição brasileira): “Não é tanto a língua dos pintores, mas a língua da natureza à qual é preciso dar ouvidos.....Sentir as coisas em si mesmas, a realidade, é mais importante que sentir os quadros; em todo caso é mais fecundo e mais vivificante. Porque tenho da arte e da própria vida, de quem a arte é essência, um sentimento tão vasto e tão amplo, acho irritante e falso quando vejo pessoas posando de acadêmicos”[11]. De um lado os acadêmicos, pintores e quadros e do outro a natureza, o sentir, a vida. Personificação de Mãe e Personificação de Pai. Esta Personificação de Pai que exige um radical afastamento da Personificação Materna deverá morrer; mas morrer apenas para renascer sob uma outra forma. Um Pai não mais destacado da natureza, dominando-a e impondo-lhe leis, mas um Pai integrado à própria natureza, respeitando-a, compreendendo-a participativamente. Carta de dezembro de 1881(Van Gogh com 28 anos): “Eu creio que ele não lhe vem mesmo ao espírito senão quando começamos a nos fazer uma idéia de Deus repetindo a conclusão que Multateli tirou em sua Prece do ignorante:"Oh! meu Deus, não há Deus!" Tome o Deus dos pastores; eu o acho morto. Sou um ateu por isto? Os pastores me consideram como tal - que seja - mas eu amo, veja você, e como eu poderia conhecer o amor se eu não vivesse e os outros não vivessem? Já que nós vivemos, tudo isto é maravilhoso. Chame isto de Deus ou de natureza humana, ou o que quer que você queira, porque em cada sistema filosófico existe alguma coisa para a qual me será impossível de dar uma definição, ainda que este núcleo seja muito vivo e muito real; isto é que é Deus ou seu equivalente, você compreende?”[12] (pág. 158) Van Gogh remodela o Deus autoritário legislador dos pastores transformando-o em um Deus-Natureza, um Deus imanente, um Deus que supera as dicotomias, e que contém em si a Mãe e o Pai; Van Gogh desejaria que Théo fosse este Pai/Mãe. Van Gogh necessita e necessitará através de toda a sua vida de alguém que represente personificações que atendam às suas necessidades no sentido mais amplo do termo. Estas personificações ele primeiro as buscou nos próprios pais. Não se sentindo nem compreendido, nem atendido em suas necessidades, transferiu para o irmão Théo estas personificações. Podemos acompanhar este processo de transferência através de uma carta escrita entre setembro e novembro de 1881: “A casa paterna, no entanto, deve ser e se manter, custe o que custar, nosso refúgio; nosso dever é de apreciá-la tanto quanto honrá-la....Acontece que existe um refúgio melhor, necessário, indispensável, tão bom, tão necessário e tão indispensável quanto é a casa paterna: é a nossa casa e o nosso refúgio de nós...”[13].(pág.124, ed.francesa). Vincent prossegue mais adiante nesta mesma carta:...”.uma só palavra de mãe me teria decidido lhe confiar tudo o que não se pode revelar num primeiro momento. Ela se obstinou em não pronunciar esta palavra; ao contrário, ela me recusou a ocasião de me abrir com ela....Você compreenderá, sem dúvida que um homem decidido a agir só pode aprovar parcialmente sua mãe que reza para obter que ele se resigne. E que ele então ache em outro suas palavras de consolação, um pouco fora de época, e que ele repita do fundo de seu coração: eu não aceito de forma alguma o jugo do desespero....Porque eu não me engano, não é meu irmão?: nós não somos apenas irmãos, mas também amigos e semelhantes, não é?”[14](pág.127). Pascal Bonafoux em sua introdução ao livro "Lettres a Théo" de Vincent Van Gogh, observa que Vincent e Théo são os mesmos. Eles são o mesmo(p.8). Sem dúvida esta é uma referencia a uma relação simbiótica que se estabeleceu entre os dois irmãos. Para Vincent, em Théo se reunem as Personificações de Pai e de Mãe. Théo deverá ser uma Mãe incansavelmente nutridora, inspiração de singularidade; e ao mesmo tempo um Pai compreensivo, capaz de  acolher e preservar a singularidade do filho, encontrando caminhos de absorção desta singularidade pelo tecido social, possibilitando-lhe ocupar um lugar na cultura. Théo falhará nessa missão. Seu fracasso ficará registrado em uma última carta escrita por Vincent encontrada em seu bolso de suicida: “Meu caro irmão: Obrigado por sua gentil carta e pela nota de cinqüenta francos que ela continha. Já que as coisas vão bem, o que é o principal, por que insistiria eu em coisas de menor importância? Por Deus! Provavelmente se passará muito tempo antes que se possa conversar de negócios com a cabeça mais descansada. Os outros pintores, independente do que pensem, instintivamente mantêm-se à distância das discussões sobre o comércio atual. Pois é, realmente só podemos falar através de nossos quadros. Contudo, meu caro irmão, existe isto que eu sempre lhe disse e novamente voltarei a dizer com toda a gravidade resultante dos esforços de pensamento assiduamente orientado a tentar fazer o bem tanto quanto possível - volto a dizer-lhe novamente que sempre o considerarei como alguém que é mais que um simples mercador de Corot, que por meu intermédio participa da própria produção de certas telas, que mesmo na derrocada conservam sua calma. Pois assim é, e isto é tudo, ou pelo menos o principal, que eu tenho a lhe dizer num momento de crise relativa. Num momento em que as coisas estão muito tensas entre marchands de quadros de artistas mortos e de artistas vivos. Pois bem, em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte - bom -, mas pelo quanto eu saiba você não está entre os mercadores de homens, e você pode tomar partido, eu acho, agindo realmente com humanidade, mas, o que é que você quer?”[15] Esta pergunta é crucial. O que mais deseja Théo, Personificação Materna além de tudo que já lhe foi dado - dedicação, trabalho, esforço, sanidade, saúde -para finalmente, como Personificação Paterna, introduzi-lo no social? O binômio cobrança/culpa instaurado pela relação simbiótica entre os dois irmãos, levado às últimas conseqüências, provoca a morte de ambos. Seis meses após o suicídio de Vincent, morre Théo.   
       Em sua ânsia de manter preservada sua autenticidade, é Van Gogh um anunciador de questões atuais. Ele indica um Estado que já não exigiria que todos se conformassem a modelos, mas uma Sociedade que pudesse acolher a singularidade de seus membros, não lhes impondo valores prévios. Talvez pareça estranho este aparentemente despreocupado trânsito de mão dupla entre o inconsciente e o préconsciente-consciente, o social e o familiar. É Freud quem nos fornece elos entre a onto e a filogênese, entre o consciente e o inconsciente. Vejamos o que ele diz em "O ego e o id": “O que a biologia e os destinos da espécie humana operaram no id e lá deixaram como seqüela: aí está o que o ego toma para si mediante a formação do ideal, e o que é revivenciado por ele como indivíduo. O ideal do ego tem, em conseqüência de sua história de formação, os vínculos mais abundantes com a aquisição filogenética de cada indivíduo - a sua herança arcaica”[16]..(pág. 38) . E mais adiante: As vivências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; porém, se se repetem com suficiente freqüência e intensidade em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transpõem-se para o id como vivencias, cujas impressões são conservadas por herança. Desse modo, o id hereditário alberga em seu interior os restos de inumeráveis existencias-ego, e quando o ego extrai o seu superego a partir do id, talvez não faça mais que trazer de novo à luz figuras, moldagens egóicas mais antigas, proporcionando-lhes uma ressurreição.(pág.39/40)[17]. Van Gogh pertence a uma linhagem de existências-ego introdutoras de transmutações na herança cultural da humanidade. A memória cultural que hoje prevalece tem um forte acento edípico autoritário, garantido por um superego paterno, delegado severo dos valores sociais em vigor conectados com traços de ancestrais valores depositados no id por séculos de prática comunitária. é com esta herança filogenética que a criança em seu desenvolvimento ontogenético entrará em contacto quando da resolução de seu complexo de Édipo. Para o pleno sucesso desta transmissão cultural a superação do Complexo de Édipo deverá ser súbita, brutal, intensa. Esta brutalidade da entrada no mundo da cultura nós a encontramos desde a escolha da tragédia de Sófocles como paradigma de interdição, reencontramo-la no assassinato do pai em "Totem e Tabu" com suas conseqüências de medo e culpa que criam uma lei autoritária modelar, até a idealidade da resolução maciça do Complexo de Édipo no âmbito familiar. Freud:  “O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influencia da autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego”[18].("O ego e o id", vol.19, pág.36). Ao desintegrar o Complexo de Édipo o menino identifica-se com o superego do pai e rompe sua relação simbiótica com a mãe, aceitando os valores modelares do pai e da sociedade e afastando-se das crenças criadas na singularidade da relação com a Mãe. Em termos mais amplos: A resolução súbita e  autoritária do complexo de Édipo resulta em uma identificação com a função superegóica despótica de preservação dos valores da cultura - a função-Pai; e reprime, dissocia ou dissolve a função-Mãe:  intuição, empatia,  capacidade de identificação. A função-Pai no seu exercício da autoridade e do uso dos modelos apela para uma episteme dicotômica que se opõe à função unificadora da Personificação da Mãe. O menino para tornar-se um Homem deverá abandonar, esquecer, fazer sumir sua ligação à Mãe. Deverá abandonar os seus valores prévios desprezando-os como "coisas femininas". O dever obscurece o amor, a razão livra-se da intuição, as dicotomias se instalam separando sujeito/objeto, a empatia e a identificação são repudiados como meros enganos da sensibilidade, a natureza torna-se um objeto de manipulação não mais respeitada em seu movimento e equilíbrio. Não devemos porém nos esquecer de que Freud ao descrever o complexo de Édipo completo refere-se tanto a uma identificação do varão com o objeto-Mãe abandonado quanto fala de uma remanescente corrente terna em relação a este objeto. Trata-se porém de um acréscimo secundário a uma estrutura patriarcal básica; a ossatura do complexo de Édipo, sua sustentação básica é fundamentalmente a identificação com o superego do pai (ou dos pais) e a retirada do investimento libidinal da mãe. Mesmo ao falar da identificação do varão com o objeto-Mãe abandonado e da corrente afetiva residual, ele  o faz minimizando ambos os processos: “Com a demolição do complexo de Édipo a catexia objetal da mãe tem de ser abandonada. O seu lugar pode ser preenchido ou por uma identificação com a mãe, ou um reforço da identificação-pai. Costumamos considerar este último desenlace como o mais normal; permite reter, em certa medida, o vínculo terno com a mãe. Dessa maneira, a dissolução do complexo de Édipo consolidaria a masculinidade no caráter de um menino”[19].("O ego e o id", vol.19, pág.34 na edição argentina e pág.46/7 na edição brasileira). O Complexo de Édipo, tal como a psicanálise no-lo apresenta tem um caráter dicotômico e machista, compatível com a época em que foi conceituado podendo levar-nos ao engano de que a interdição necessária à formação do campo social teria de ter obrigatoriamente este caráter.
           O projeto e a mensagem de Van Gogh corrigem esta concepção, tocando fundo na alma do homem atual. Ele propõe uma entrada no mundo adulto, a ocupação de um espaço social sem perda da singularidade, sem quebra de uma continuidade com crenças, sentimentos e valores anteriores, mantendo viva e presente a Personificação da Mãe e portanto a função-Mãe. É na preservação da função-Mãe que se mantém a singularidade. A relação Mãe-Filho é sempre única, não tem similar, nasce da própria relação, está fora das regras e das leis. Winnicott diz-nos que a mãe tem de "enlouquecer" para poder cuidar de seu bebê; é um "enlouquecimento" que aguça a sensibilidade da mãe para as necessidades de seu filho e que faz com que as fronteiras da individualidade se permeabilizem. É evidente que esta "loucura" terá de ser provisória e necessitará de um continente social para existir. Porém as vivências deste período deverão permanecer disponíveis para serem usadas e não desaparecer sob o peso de um recalque-inibição. De acordo com Winnicott será no espaço transicional, espaço do jogo e do brincar que será possível conservar viva a função-Mãe. Foi esta função, com sua forma de sensibilidade e com sua ética própria que Van Gogh fez questão de preservar. Freud:...”.pode-se conceber a catástrofe do complexo de Édipo - o exílio (desterro) do incesto, a instituição da consciência moral e da moral mesma - como um triunfo da espécie sobre o indivíduo”[20]. Para Van Gogh a questão se inverte: a esseidade do indivíduo deverá prevalecer sobre o modelo da espécie. A singularidade, as potencialidades simbióticas, serão mantidas para o encontro com o outro, para o equilíbrio com o cosmos, para a íntima ligação ao mundo, ao social, à natureza, às coisas, ao real.
             Van Gogh é uma destas existencias-ego singulares que pipocam ao longo da história da humanidade e que hoje engrossam o caldo de transformações que se fazem necessárias para evitar catástrofes ecológicas[21]. Da vida e obra de Van Gogh, de seu martírio e imolação podemos tirar um apontamento e uma mensagem. A sociedade deveria se organizar no sentido de poder conter a singularidade de cada ser humano. A interdição não mais teria o caráter violento do mito edípico tal como  foi desvelada por Freud ao resgatar a tragédia de Sófocles. O Édipo, se assim ainda se puder chamá-lo, teria uma dinâmica que permitiria a conservação da função-Mãe. A sociedade não imporia modelos aos seus membros, mas sim se organizaria de uma outra maneira. Esta outra dinâmica que está surgindo e se desenvolvendo ainda é uma questão para mim: talvez as noções de identificação egóica(e não apenas superegóica) de exemplaridade, de repetição diferencial,  de eterno retorno sejam idéias que permitam pensar esta incipiente dinâmica.

                                        agosto/outubro de 1990
                                        Nahman  Armony



× Apresentado na Jornada interna da SPID em 1990, ano do centenário da morte do pintor. Publicado como capítulo do livro “A desconstrução do masculino” organizado por Sócrates Nolasco sob o título “Van Gogh, anunciador de uma nova masculinidade”. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
[1] VAN GOGH, V. (23/01/1873) Lettres a Theo. França: Éditions Gallimard, 1988.
[2] Idem (03/04/1878) Cartas a Theo. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
[3] Idem (07/1880).
[4] Idem
[5] Idem
[6] VAN GOGH (sem data) Lettres a Theo-p.138
[7] Idem, p.144
[8] FREUD, S. (1924)  A dissolução do complexo de Édipo IN: “Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud” vol.XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
[9] Idem O problema econômico do masoquismo.
[10] ARMONY, N. (1986). “Ser ou não-Ser” IN “Psicanálise: da interpretação à vivência compartilhada”. Rio de Janeiro: Editora Universitária Sta. Úrsula, 1989.
[11] VAN GOGH (abril/maio de 1882) Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM, 2008, 2ª edição.
[12] Idem (dezembro de 1881) Lettre a Théo. França: Gallimard, 1988
[13] Idem, p.124
[14] Idem, p127
[15] Idem, p.566/7.
[16] FREUD, S. (1923) O Ego e o Id. Amorrortu Editores, v.XIX, p.38
[17] Idem, p. 39/40.
[18] IDEM, p.36
[19] IDEM, p.34.
[20] Ibid  Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. p.275
[21] Ver As três ecologias, de Felix Guattari, Papirus Editora.

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