CONVALESCENÇA



         Sentou-se na mais amiga de suas poltronas, cuja maciez havia acolhido os seus muitos tormentos d’alma. Protegido por aquele útero materno pôde soltar-se e deixar que sentimentos e pensamentos o invadissem. Tinha-se subitamente apaixonado por uma mulher casada, alta funcionária da empresa em que trabalhava Certo dia, por circunstâncias profissionais, dera-lhe uma carona. De seu corpo exalava uma espécie de aragem que o invadiu dando-lhe inusitadas sensações de alegria, felicidade, energia; sentiu que seus canais de sensibilidade se desobstruíam tornando-o mais sensível à beleza, aos eflúvios da música e da paisagem. A estranheza destas inesperadas sensações só se diluiu ao se lembrar de que embora só a conhecesse à distância, já de algum tempo a admirava por suas muitas qualidades. Mas daí a ser atingido em suas entranhas por um enigmático sortilégio deixara-o perplexo. Apesar dos obstáculos a relação se intensificou e aprofundou. E agora estava diante de um dilema. O manancial de prazer inexcedível tornara-se fonte de extremado sofrimento para ambos. Ela amava o marido e não pretendia deixá-lo, mas também correspondia ao seu amor no mesmo diapasão de qualidade e intensidade. Ela não queria perder nenhum dos dois, e ele lhe exigia que fizesse uma escolha. Estas e outras idéias cruzavam sua mente de forma desordenada; pareciam ter vida própria misturando-se aleatoriamente, formando blocos condensados que se desfaziam e refaziam em novos arranjos. Num súbito impulso levantou-se e colocou no seu som um antigo e esquecido CD de boleros. Voltou à poltrona deixando-se embalar pela melosidade das músicas. E, de repente, uma das estrofes apareceu-lhe em vermelho: “Nosotros; que nos queremos tanto; debemos separarnos; no me preguntes más; no es falta de cariño; te quiero com mi alma; te juro que te adoro y en nombre deste amor y por tú bien te digo adiós”. Sentiu um baque no coração cujas batidas lhe falavam agora de uma mistura de sentimentos: profunda melancolia, tristeza pungente, alívio libertador. Agitou-se na poltrona que já não lhe parecia tão confortável; começou a zanzar pela casa, aflito, procurando algo intangível. Voltou à poltrona e, de repente, desabou: gritou, chorou, implorou, blasfemou: um inferno de sentimentos. Sentiu que estava arrancando do mais fundo de seu ser poderosas raízes. A figura amada aparecia e se esvaia, e sentimentos contraditórios o assaltavam: dor, mágoa, amor, desespero, impotência, impotência, impotência. Lembrou-se da infância quando tinha se afeiçoado a um leitãozinho e este subitamente desaparecera para ressurgir como lombinho assado. Seu sofrimento de menino deixara a família tão impressionada que tentaram reparar a situação oferecendo-lhe outro animal. Não adiantou, pois seu afeto dirigia-se para aquele específico. Teve raiva da família, especialmente da mãe, a encarregada da culinária. À noite sonhou que o leitãozinho ressuscitara e que novamente brincava com ele abraçando-o, acariciando-o, pondo-o no colo, mimando-o. Ao acordar deparou-se com a realidade da perda irremediável e de sua impotência diante do acontecido.
Estas e outras lembranças, pensamentos e sentimentos percorriam seu corpo de alto a baixo, deixando-o prostrado, sem forças para se levantar da poltrona. Finalmente dormiu e sonhou com seu herói da infância: o super-homem que, porém, havia perdido seus super poderes. Quase como um sonâmbulo levantou-se e trocou o CD de boleros por um de Zeca Pagodinho sentindo-se atraído especialmente pelo estribilho: “deixa a vida me levar, vida leva eu...”. Ainda aturdido, pescou o CD de Vinicius e sentiu-se penetrado pelos versos “sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão, sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão”. Sentiu que aí começava sua convalescença.

                                              Nahman Armony


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