UMA VISÃO PSICANALÍTICA DOS OBJETOS FETICHES ABSTRATOS DA MODERNIDADE

Dedico este trabalho a Odette Wildhagen, esta incrível pesquisadora intuitiva que me auxilia para além do texto. Agradeço a Ana Lila Lejarraga cuja leitura crítica do primeiro esboço deste artigo contribuiu para estruturá-lo.

Coloco o objeto fetiche como um dos habitantes do espaço potencial/transicional.

        Para facilitar meu pensamento vou figurar este espaço através de uma linha com um extremo imerso no subjetivo, o outro extremo ocupado pela objetificação do mundo e entre ambos o espaço transicional preenchido ao mesmo tempo pelo subjetivamente concebido e objetivamente percebido. A tendência do homem é viver a maior parte do tempo no espaço transicional, fora dos pontos extremos. 

        Tendo em mente esta figuração começarei pelo extremo subjetivo. Quando as pessoas sonham, devaneiam, fazem fantasias desligando-se da objetividade do mundo externo estaremos nesta extremidade. Ela nos é muito útil como um lugar de repouso no sentido principalmente de não se ter a preocupação nem o trabalho de distinguir o objetivo do subjetivo, pois o objetivamente percebido deixa de ter importância. A relação é com o objeto subjetivamente concebido.

    No outro extremo os objetos são objetificados. Para alcançar essa meta é preciso desconsiderar as impregnações emocional, inefável, afetiva, poética, misteriosa, numinosa que desmaterializam o objeto tornando-o incerto e fascinante. É uma tentativa de controlar o acaso inerente ao devir do mundo. Mas a consequência é o esvaziamento dos afetos, gerando uma sensação de vazio, de inutilidade, de falta de sentido, de tédio. A pessoa facilmente se sente solitária mesmo em presença de outros. No polo objetivo não será possível estabelecer relações intersubjetivas. A relação se dará com os objetos objetivamente percebidos.

      Examinemos agora os objetos fetichistas. A minha maneira de usar a palavra fetiche pede uma digressão. Eu me apoiarei inicialmente no sentido dado por De Brosses: fetiche é um objeto divinizado, adorado, com poderes mágicos que dá segurança àquele que o possui.  Freud fala da existência de bonecos-fetiche nas culturas tribais. Trata-se de uma réplica do dono e o substituirá nas horas da aplicação do castigo por atos condenáveis. Assim o amo se livra do castigo e da culpa que ficam colocados no fetiche. (Mal-estar na civilização. P.150).
Até aqui estamos falando do fetiche dos povos chamados primitivos.        Desde então fetiche sofreu várias interpretações ao ser utilizado em outras áreas do saber: para Alfred Binet (“O fetichismo no amor” publicado em 1887) trata-se de um investimento libidinal em objetos inanimados e partes do corpo. Na concepção de Freud (“Fetichismo” em 1927) o fetiche é um objeto parcial que representa o pênis. Para Marx a mercadoria é um fetiche que esconde o valor de uso dos objetos. Já Adorno(Textos escolhidos, 1963) fala de um fetichismo musical.

        A mesma coisa nos é dito por Maria Helena Fernandes em relação a um fetichismo que tem como objeto o corpo. Trecho de seu artigo “O corpo e os ideais no mal estar feminino” (Revista Científica de Ockham, vol.10 n.1 Enero-junio 2012). No I Colóquio Internacional sobre Praticas e usos do corpo na modernidade, que ocorreu na Universidade de Rennes II, em 2007, eu enfatizei que a clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia, ao colocar em evidencia a fetichização do corpo, o apego ao ideal e a amplitude do mecanismo da recusa e da clivagem, revelava sua potencialidade para engendrar uma contribuição, propriamente psicanalítica, a respeito das vicissitudes do mal estar contemporâneo”.

       Este nomadismo conceitual me anima a propor que se ponha em circulação a ideia de fetiches abstratos modernos. A concepção de fetichismo musical de Adorno permitirá compreender melhor minha concepção de fetichismo abstrato moderno. Começarei por uma citação que se encontra na p. 87 do livro T.W.Adorno – Trechos escolhidos da Editora Nova Cultural de São Paulo, editado em 1996.

“A consciência da grande massa dos ouvintes está em perfeita sintonia com a música fetichizada. Ouve-se a música conforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse resistência por parte do público, se os ouvintes ainda fossem capazes de romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado lhes oferece.”

No meu entendimento, Adorno está nos dizendo que quando o mercado impõe ao público um gosto musical  está abafando o autêntico gosto singular de cada um. Está substituindo um aspecto do verdadeiro self pelo falso self.
        Usando a mesma concepção considerarei que certos objetos abstratos são objetos fetiches, imposições falso self da sociedade.

Chamarei então de fetiches às ideias de winner, perfeição, sucesso, celebridade, fama, e outras que tais quando levadas ao exagero e, portanto não integradas no conjunto corpopsiquemente. São fetiches por terem a característica de serem adorados, por se lhes atribuir poderes mágicos e pelo recurso da duplicação. Estes atributos quando integrados em um quadro mais amplo de vida, em um campo que inclua as relações humanas com os seus afetos amorosos e agressivos, estará sob a vigência de uma integração corpopsique/mente e, portanto com um pertencimento ao campo transicional propriamente dito, o que impedirá sua exponenciação. Se a mente se apodera dos desejos aqui citados separando-os do psiquessoma poderão se tornar fetiches, migrando para o polo objetivo radical do espaço transicional.

 O objeto transicional estabelece uma ponte entre o subjetivo e o objetivo englobando-os em uma unidade paradoxal. Digamos que eu seja um juiz julgando um amigo. Terei sentimentos carinhosos por ele e tentarei protegê-lo; ao mesmo tempo, quererei exercer a minha função de juiz analisando objetivamente os fatos. Eu poderia dar logo uma sentença que seria um misto de legalidade (objetividade) e clemência (subjetividade); ou poderia transitar por mais ou menos tempo entre meus sentimentos por ele e minha fidelidade à lei até encontrar uma sentença que estivesse de acordo com o conjunto de meu psiquismo. Neste caso a ideia de justiça estaria transitando pelo espaço transicional. Porém, se eu, como juiz, me ater estritamente à Lei, transformando-a em fetiche, deixarei de transitar entre o objetivo e subjetivo, tornando-me um ser exclusivamente racional, uma pedra sem sentimentos. O objeto transicional “Lei” objetifica-se passando a ser um objeto fetiche; de uma ligação viva entre o objetivo e o subjetivo passa à condição de um lócus sem fluidez temporal onde habitam objetos despojados de seu potencial transicional por carência de conexão subjetiva. Mutatis mutandis trata-se da mesma situação do menino do cordão descrito por Winnicott. O menino inicialmente usou o cordão como objeto transicional tornando presentes as pessoas ausentes; com o tempo o cordão perdeu suas propriedades transicionais e tornou-se uma negação da separação. “O cordão se torna uma coisa em si”, diz Winnicott (Winnicott – O brincar e a realidade, p.36).  O cordão transicional evoca a relação intersubjetiva entre os membros da família. O cordão fetichista ocupa o lugar da relação intersubjetiva. Aqui eu penso em artistas de cinema talentosos que viviam e transmitiam os sentimentos dos personagens e que viraram canastrões, imitando sentimentos que no passado tinham autenticamente vivido, mas que agora estão esvaziados de emoção, sem possibilidade de envolver afetivamente a plateia. Encontramos essa mesma situação em pessoas comuns que desenvolveram autenticamente uma sensibilidade em relação aos sentimentos do outro e que perdendo-a passam a representar discreta e teatralmente uma sensibilidade falsa, inautêntica, entrando na área do falso self. Elas imitam aquelas pessoas que eram no passado transformando-se em fetiches de si mesmas. Usam a memória mental, racional para realizarem esta imitação. Outro exemplo: acompanhei a carreira de uma violinista famosa que tocava com alma, transmitindo seus sentimentos à plateia e que perdeu a capacidade de comunicação emocional embora as nuances expressivas estivessem presentes. Mas essas nuances não mobilizavam os sentimentos da plateia dando a impressão de que ela copiava a violinista que fora. Ao término de seu desempenho os aplausos foram convencionais e frios. Poderíamos hipotetizar que na ânsia de manter sua virtuosidade e capacidade  interpretativa ela delegou esta tarefa ao intelecto. E isto teria acontecido por ter ela em algum momento “escorregado” o que lhe era inaceitável, devido ao fetiche “perfeição”. Deixando de confiar na sua espontaneidade teria delegado á mente a tarefa de uma fiscalização onipotente. Isto ficará mais claro no exemplo seguinte que retirei do livro “A humilhação” de Philip Roth. Seu personagem principal, Axler, um famoso ator de 65 anos, no auge de sua carreira, torna-se um observador consciente do seu desempenho. “Ele tinha consciência da pior maneira possível, de cada instante que passava no palco. Antes, quando ele atuava, não pensava em nada. O que fazia bem, fazia por instinto. Agora pensava em tudo, e tudo que havia de espontâneo e vital era destruído ---- ele tentava controlá-lo com o pensamento e acabava destruindo-o.”(p.8). “Uma imitação de si próprio havia surgido, algo que não existia antes, uma autoimitação que não tinha base em nada, e ele era aquela autoimitação, e como foi que aquilo tinha acontecido?”(p.14). Finalmente ele se suicida representando o papel de Konstantin Gravilovich da peça teatral “A Gaivota”. Seu bilhete de despedida com apenas 8 palavras dizia: “O fato é que Konstantin Gravilovch se matou”. Axler, ao tentar controlar seu desempenho para que fosse perfeito, entregou à mente esta tarefa, dissociando-a do psiquecorpo. Transformando-se em falso self a vida perdeu a beleza, a emoção, o mistério, tornando-se fútil, sem sentido. Uma hipótese dinâmica: o comportamento inicialmente espontâneo permitiu que Axler se tornasse um grande ator, admirado, festejado, amado. O receio de que as inevitáveis falhas viessem a prejudicar os sentimentos positivos de seus admiradores, fez aparecer o desejo de alcançar o fetiche “Perfeição” e transformou o comportamento espontâneo que advém de um equilíbrio entre psiquecorpo e mente para um comportamento dirigido pela mente, portanto dominado pelo racional. Pertence ao paradigma moderno em declínio mas ainda vigente, a concepção de que a mente é a única capaz da proeza de um comportamento onipotentemente controlado e, portanto perfeito. Maria Helena Fernandes, já citada acima, tem uma percepção semelhante à minha: “Uma questão se coloca: por que a alimentação vem adquirindo lugar de destaque no cenário contemporâneo? A meu ver a preocupação com a alimentação tem se convertido em fetiche privilegiado do controle do corpo na atualidade. É o corpo fetichizado que parece servir de estandarte do projeto higienizador e totalitário de controle da existência humana na modernidade” (Ibid, a.137).

O dinheiro é um exemplo esclarecedor da dinâmica fetichista: a moeda foi uma grande conquista da humanidade que facilitou a circulação de mercadorias e de forças de trabalho. Estava, portanto no campo do valor de uso. Com o passar do tempo, a moeda passou a ser um valor ela própria, sem ligação com o seu uso. Tornou-se um fetiche. Uma ótima caricatura desta situação é o Tio Patinhas que tinha uma piscina cheia de moedas na qual mergulhava com deleite e devoção. As moedas provocavam-lhe orgasmos psíquicos. A moeda transforma-se em fetiche quando perde sua conexão com objetos vivos e passa a ter um valor em si. Exatamente o que Winnicott fala do cordão. Exatamente o que acontece quando uma pessoa torna-se um falso self. Ela não mais se identifica com a realidade subjetiva do outro mesmo que a perceba e a use. Ao mesmo tempo, não estando afetivamente ligado ao outro podemos também dizê-lo autista (não estou me referindo ao autismo descrito por Tustin mas sim ao que hoje é chamado de espectro autista). São pessoas que sofrem de solidão independentemente do número de conhecidos e amigos que tenham. Voltando ao exemplo do juiz poderemos dizer que lhe é fácil aplicar a lei quando o aspecto subjetivo, amoroso não está presente. Neste caso ele estará no polo objetificante do espectro transicional. Ele até poderá intelectualmente levar em consideração o aspecto amoroso, não por senti-lo, mas por estar sob escrutínio público, sujeito a crítica, reprovação e até repulsa e sentimentos de asco. O objeto fetiche deste juiz seria a Lei que lhe permitiria viver uma vida emocionalmente afastada da subjetividade de seus semelhantes.

EM RESUMO: ao tentar controlar intelectualmente os afetos referidos aos objetos fetiche abstratos e acreditando na onipotência da mente racional, a pessoa acaba dissociando a mente do psique/corpo, colocando-se no extremo objetificante do espectro transicional, transformando-se num falso self com o seu cortejo próprio de sofrimentos.  
       
                                                               Nahman Armony
   
Em 26/11/2013

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