(do livro "O Homem Transicional")
A frase que dá nome a este capítulo é,
para mim, um ardil tentador. Ela acena com viagens incríveis pelos dédalos
fascinantes das palavras e frases prometendo levitar-me para cenários
inteligentemente maravilhosos, ameaçando tirar meus pés da realidade terrena. Ela
me remete irresistivelmente à frase bíblica “o pão nosso de cada dia dá-nos
hoje” empurrando-me para um paralelismo que poderá ser pertinente e criativo desde
que eu não me deixe arrastar por uma imaginação demasiadamente solta e sem
compromisso com o drama humano. Um humano que aparenta ser pobre diante daquilo
que a linguagem pode inventar. A linguagem das palavras, com seus recursos retóricos,
cria um mundo próprio, fascinante e sem freios. Ótimo para quem no seu ninho de
repouso está disposto a viajar por um mundo fantástico. Se, porém, quero falar
da vida diariamente vivida devo tomar cuidado: aproveitar as aberturas que a
linguagem me sugere sim, mas me mantendo ligado à terra. Não é uma prática
fácil, mas se bem exercida pode revelar facetas inesperadas do humano concreto.
Como já exposto, a frase “O trauma
nosso de cada dia” evoca a oração cristã cuja formulação completa é “o pão
nosso de cada dia dá-nos hoje”. Essa a súplica religiosa. Poderia “o trauma
nosso de cada dia dá-nos hoje” ser uma oração psicanalítica? Será que
necessitamos tanto da doação do trauma quanto do pão? A doação do pão depende
da vontade de Deus. O trauma depende do acaso, mas um acaso que certamente
acontecerá, portanto um destino inelutável.
Pão significa alimento básico
necessitado pelo homem para a sua sobrevivência. Também lembra a divisão dos
pães, um ato de compartilhamento que irmana os homens. O que o trauma tem a ver
com alimento básico e compartilhamento? Não é estranho falar do trauma como
doação? Felizmente minhas associações inconscientes indicam um caminho. Logo
surgem na minha mente as concepções de “falha necessária” que Winnicott chama
de desilusão e Kohut de frustração ótima. Segundo ambos, é necessário que as
falhas aconteçam para haja diferenciação, individuação e crescimento psíquico
do bebê e da criança. As falhas seriam então bem-vindas justificando a frase
bíblica modificada. Mas será que poderíamos chamar a desilusão e a frustração
de traumas?
Winnicott nos dá na p. 201 do livro
“Explorações psicanalíticas”, no artigo “A experiência mãe-bebê de mutualidade”
uma definição taxativa de trauma: “Um
trauma é aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada, de
maneira que um estado de confusão sobrevém seguido talvez de uma reorganização
de defesas, defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram
suficientemente boas antes da ocorrência do trauma(...)Em outras palavras,
experienciaram trauma e suas personalidades têm de ser construídas em torno da
reorganização de defesas que seguem os traumas, defesas que devem precisar
reter aspectos primitivos, tais como a cisão da personalidade”. Nessa
acepção não poderíamos chamar de trauma a desilusão provocada por uma mãe
suficientemente boa, pois ela acontece no momento em que a criatura está
preparada para recebê-la. É verdade que há uma gradação entre uma desilusão
adequada e outra inadequada que nos seus extremos são facilmente reconhecíveis,
mas que em sua linha de percurso nem sempre é clara, possuindo ao mesmo tempo
propriedades de adequação e de inadequação em proporções diferentes dependendo
do momento em que a desilusão é provocada. Além disso, essa definição dura
(“tough”) se atenua quando o próprio Winnicott (no artigo “O conceito de trauma
em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família” que se encontra
no mesmo livro) hesitantemente, oscilatoriamente, amplia a noção de trauma até alcançar
a desilusão suficientemente boa: “Dessa
maneira, existe um aspecto normal do trauma. A mãe está sempre ‘traumatizando’,
dentro de um arcabouço de adaptação, e, desse modo, o bebê passa da dependência
absoluta para a dependência relativa” (p.114). Posso então compreender, à
minha maneira, suas concepções de “trauma benigno” e “trauma maligno” que se
encontram neste mesmo artigo: “Na sessão
que estou escolhendo para relatar, uma coisa nova acontecera: a paciente achou
que minha interpretação principal
devia estar certa e, contudo, ela não havia previsto isso. A interpretação
fora, portanto, ‘traumática’, no sentido de ultrapassar as defesas. Este trauma
benigno refletia o novo sentimento da paciente a respeito do trauma maligno”
(p.105) Infiro que a concepção de trauma maligno adveio dos fatos que ele
descreve numa frase anterior: “Este
estado de coisas começou quando um início de infância excepcionalmente feliz
terminou abruptamente porque o pai morreu e a mãe imediatamente tornou-se
melancólica.” (p.105). Ao trauma da morte do pai se acrescentou o trauma do
abandono da mãe e o conseqüente desaparecimento do escudo protetor que, em
funcionando, abrandaria a força do acontecimento potencialmente traumático.
Estou aqui querendo dizer que o trauma se atenua na presença de uma pessoa
capaz de empatia e identificação. Em algum ponto de seus escritos, não me
lembro qual, Winnicott fala do término da sessão como uma agressão, mas uma
separação agressiva necessária para a independência e para a realização, um trauma
que será tão mais benigno quanto mais empática e amorosa for a transferência.
Permito-me então dizer que as falhas da
figura maternal no manejo do bebê ou da criança, inevitavelmente provocativas
de frustração/desilusão, têm os dois componentes: o componente traumático cujo
resquício é a carência, e um componente recuperador que induz uma potência. O
componente traumático poderá ser mínimo quando então a recuperação será fácil e
(quase) imediata, ou poderá ser máxima e a recuperação extremamente difícil
exigindo grande trabalho psíquico e grande mobilização de defesas. Existe,
naturalmente, uma gradação que vai de um pólo a outro. A presença de um outro
empático diminui a força traumática de um evento externo ou interno.
Em psicanálise quando se fala de trauma
pensa-se em trauma infantil. Nas primeiras etapas de nossa disciplina esse
trauma era um acontecimento forte, marcante, catastrófico, cujo protótipo era a
violência sexual dirigida a um pré-púbere. Seus similares adultos encontram-se
no trauma de guerra, na perda de algo fundamental na vida tal como pessoas
queridas, emprego, nas catástrofes (incêndio, terremoto, inundações, etc.),
situações de alta periculosidade como assalto, sequestro. Certamente não se
trata do trauma nosso de cada dia. Kris (“The personal mith” in “J.Amer.Psychanal. Assoc. 4) distingue o
“trauma por choque” do “trauma por tensão”. O trauma por choque é eventual,
descontínuo. Já o trauma por tensão é constante, continuadamente repetitivo e se
nos reportarmos à infância e meninice certamente recorreríamos ao conceito de
“trauma cumulativo” de Masud Khan.
Mas
a frase desafiadora do título nos leva a pensar não em infante, nem em criança,
mas em adulto. Esta é uma distinção importante, pois os traumas acontecidos na
infância são estruturantes, fazem parte da modelagem da personalidade. Masud
Khan escreve: “A tensão e as invasões
decorrentes do fracasso do papel da mãe como escudo protetor, que aqui estou
denominando de trauma cumulativo, têm efeito mais específico nas vicissitudes
de desenvolvimento do ego corporal da criança e do bebê (...) as fendas no
papel da mãe como escudo protetor deixam os resíduos mais sensíveis e reais no
desenvolvimento do ego corporal da criança. Tais resíduos, durante toda a
maturação e desenvolvimento, acumulam-se, formando um tipo específico de
organização de ego corporal, e constituem o substrato da personalidade
psicológica”. (“O conceito de trauma cumulativo” in “Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos” p.71). Quando os
traumas acontecem com um adulto “pessoa inteira” (Winnicott, 1954, Da pediatria...
p.375) não há uma alteração do arcabouço básico de sua personalidade. Isto em
grande parte é verdade. Existem exceções como traumas extremamente violentos e
traumas sutis e contínuos. Ações contínuas sobre um adulto sejam na dinâmica do
trabalho ou do lar podem produzir alterações psíquicas importantes tanto no
sentido negativo como no positivo. É claro que as condições prévias são
importantes no estabelecimento da dinâmica, mas não podemos deixar de levar em
conta o funcionamento do ambiente; os princípios organizadores do funcionamento
psíquico do chefe ou da esposa, por exemplo, influem no estabelecimento de uma
dinâmica intersubjetiva. Uma mesma atitude inúmeras vezes repetida (por
exemplo, desvalorizar ou desprezar repetidamente alguém no trabalho ou no lar
sem que a pessoa reaja) acaba por influir na própria integridade pessoal. Qual
a reação da pessoa é uma questão complexa e tem a ver com a bagagem trazida e
com os dilemas da situação presente. Por exemplo, numa época de crise, em que
os empregos são escassos, uma pessoa que tenha de sustentar uma família, terá
grande dificuldade de abandonar um emprego para escapar das humilhações de um
chefe prepotente. Ele poderá conservar
sua autoestima apesar dos ataques, mas a repetição das agressões poderá acabar minando
o seu equilíbrio psicossomático. A pessoa poderá tentar recuperar seu
equilíbrio atacando outras. Poderá ser que sua ética o impeça de transferir
para outra o seu mal-estar mantendo-o internalizado e provocando sintomas
psicossomáticos. A reação individual é uma resultante das condições pessoais se
desenvolvendo e interagindo com o meio-ambiente. O ambiente será mais ou menos
traumático dependendo da qualidade do “escudo protetor”, algo que já foi função
da mãe na díade mãe-filho, mas que foi tornando uma função individual na medida
em que a pessoa enveredava pelo “rumo à independência” como diz Winnicott ou,
como eu e outros preferimos, rumo à interdependência.
Estarei falando aqui do cotidiano do
adulto na sociedade contemporânea afetado na maior parte do tempo por traumas
benignos. O “homem inteiro” de que nos fala Winnicott teria tido uma mãe
suficientemente boa, exercendo suficientemente bem o papel de escudo protetor
do qual, aos poucos, o ser humano em crescimento vai se apropriando, de tal
forma a poder, já adulto e sem a mãe como ego auxiliar, elaborar e superar os
traumas diários. Nesta elaboração e superação há um enriquecimento da
personalidade, fundamental para manter a higidez psicossomática o que permitirá
um saudável relacionamento com as outras pessoas. “Dai-nos, Deus, o trauma
nosso de cada dia para que possamos viver intensa e matizadamente a vida” seria
nossa oração psicanalítica, quer acreditemos n’Ele ou não.
Quais seriam os fatores traumatizantes
da pós-modernidade? E como lidar com eles? Sem dúvida a contemporaneidade traz
novos estímulos e intensifica estímulos já existentes que rapidamente se acumulam
tornando-se traumáticas. O trânsito engarrafado, os ruídos da cidade (obras, veículos,
festas, algaravia), a pressa ansiosa, a velocidade das transformações
tecnológicas e organizacionais, a concorrência profissional e a competição
selvagem, os prazos apertados, a liberdade diante de uma multiplicidade de
escolhas, a ausência de certezas, os conflitos nas escalas de valores,
conflitos na esfera amoroso-erótica, insegurança no trabalho, tudo isto atua
como traumas já que provocam um acúmulo de ansiedade que terá de ser processado
pelo psiquismo. A questão é: como podemos nós psicanalistas ajudar nesse
processamento? Tomarei como exemplo uma situação que afeta a todos nós.
Bauman escreve no seu livro “Vida para
consumo” de 2008 que “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar
sujeito sem primeiro virar mercadoria...” (p.20). Na vida diária isto se traduz
pela falta de consideração com o ser humano. Telefonemas não retornados,
e-mails não respondidos, falta de atenção no contacto pessoal... só somos
levados a sério se despertamos algum interesse mercadológico ou pragmático no outro;
caso contrário somos ignorados. Esses desrespeitos afetam nosso sentimento de
valor. Não somos vistos como pessoas com uma subjetividade, mas como
mercadorias a serem utilizadas. Nossa tendência à adaptação ao meio social,
agindo fora do alcance da consciência, faz com que nos esforcemos em nos tornar
mercadorias, com sérias repercussões em nossa autoestima e, portanto em nosso
equilíbrio psíquico. Esta é uma situação que deverá ser revelada ao nosso
analisando para que ele entenda a origem de seu mal-estar e perceba que a
desconsideração não tem a ver com a sua pessoa individual, mas é uma
característica da subjetividade social da qual ninguém escapa a não ser se
tornando uma figura importante de seu meio... e mesmo assim, fora de sua esfera
de influência será tratado como mercadoria. Essa percepção/consciência atenuará
a força do trauma.
Outra situação da contemporaneidade são
as tensões que surgem quando as relações verticalizadas da modernidade transformam-se,
na pós-modernidade, em relações horizontais, obrigando as partes a um diálogo
que poderá levar a uma compreensão mútua ou a um trauma comunicacional. O
entendimento recíproco será tanto mais possível quanto mais a pessoa conhecer
de si mesma e da outra e da dinâmica da relação. A psicanálise poderá ser de
grande valia para a obtenção desta aptidão: saber da existência dos dinamismos intersubjetivos
implícitos que se formam no encontro de duas subjetividades e a obtenção da
habilidade de perceber parte deles pode levar a uma mudança favorável do
comportamento.
Em relação à concorrência selvagem e à
competição desenfreada só uma mudança de orientação subjetiva -- que se
refletirá no modo de existir -- poderá evitar os traumas acumulativos delas
derivadas. De uma orientação mercantilista e implacavelmente desumana, dirigida
para o acúmulo de bens, dinheiro e poder, passar-se-ia para outra em que o
importante está alocado nas relações afetivas, no desfrute da cultura, na
realização de potencialidades advindas de um verdadeiro self, na curtição dos
prazeres e na fruição das belezas que o mundo oferece. A terapia psicanalítica
alicerçada na intersubjetividade e na complexidade e a filosofia na linhagem
spinozista e deleuziana poderão ser de grande auxilio, de preferência assessoradas
pela sociologia e antropologia. Essa mesma associação transdisciplinar poderá
dar conta da transformação de certezas como aspiração de vida para a incerteza
como afável companheira de viagem, neutralizando a força de trauma maligno que
o inesperado carrega, ao transmutá-lo em trauma benigno, estimulante de
criatividade e realizações.
Set./2010
Nahman Armony
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