A AVENTURA DA PAIXÃO VISCERAL


                                                                 
         Após algum tempo de relacionamento amoroso, diferente para cada casal, pode acontecer de um dos parceiros reclamar do outro: “Você já não é o mesmo. Me enganou para me conquistar. Antes, parecia adivinhar os meus desejos e mesmo se antecipar a eles. Muita coisa de sua personalidade que você revela hoje, não apareceu nos primeiros tempos de nosso relacionamento”. E vai por aí, muitas vezes chamando-o (a) de mentiroso (a), farsante, fingido (a), etc. Uma carga de adjetivos negativos desaba sobre sua cabeça tornando-o um pulha, um ser desprezível. Mas será ele realmente um mau caráter? Pode ser que sim. Mas também é possível que tenha sido vítima da síndrome de apaixonamento visceral
         Este tipo de apaixonamento toca o mais fundo do ser de cada um, estabelecendo-se então espontaneamente (sem planejamento) uma relação onde quem conta é o outro, com seus desejos, melindres, peculiaridades. A atenção é inteiramente desviada de si mesmo e toda dirigida para o ser amado. Este apagamento pessoal faz do amante um servidor, quase um escravo do ser adorado. As questões pessoais, as próprias necessidades, melindres e desejos deixam de ter importância. Cria-se uma situação em que os defeitos e desejos pessoais não aparecem (o único desejo é fazer o outro feliz), e a pessoa esmerando-se em servir o amado aparece como um ser caído do céu, destinado a torná-lo venturoso para todo o sempre. É uma relação que lembra a dupla mãe-bebê em que a primeira deixa de lado os dissabores, as questões pessoais, os outros amores e interesses para se dedicar exclusivamente ao seu rebento, àquele ser visceral gestado na intimidade de sua barriga.
         Em se tratando de casal amoroso, ambos são, metaforicamente, bebê e mãe. Um procura agradar e servir ao outro em detrimento de si próprio.  
         O apaixonamento visceral tornará o casal tão amalgamado que poderemos mesmo compará-los a irmãos siameses unidos por vísceras comuns. Quero aqui recordar o filme “O segredo de Brockeback Mountain” onde vemos que nada, nem mesmo a morte pôde separar os amantes. E aqui está o busílis da relação. Quando o mútuo fascínio declina, surgem as individualidades e as diferenças pessoais. Muitas variáveis entram então em jogo: se as diferenças forem tão grandes que tornem incompatível a convivência, a relação de apaixonamento visceral fará com que a necessária separação, se puder acontecer, seja extremamente dolorosa, provocando muito sofrimento psíquico e físico. Se as diferenças não ultrapassarem o limite das possibilidades de entendimento, a força da relação visceral ajudará a superar o desconforto causado pelas diferenças facilitando a renúncia ao desejo impossível de entendimento perfeito. 
         Como surge este tipo de amor que estou chamando de apaixonamento visceral? Lembro-me de filmes em que o namorado morre e retorna no corpo de outra pessoa. A antiga namorada que permaneceu viva, ao encontrar-se por acaso com o antigo namorado em novo corpo, evidentemente não o reconhece, mas sente que existe algo familiar nele. Esta mistura de estranho e familiar faz daquela pessoa um ser misterioso que a surpreende, intriga e a atrai. Algo antigo vindo do passado remoto vibra no seu interior e ela está pronta a se aproximar daquele estranho/familiar para um apaixonamento visceral. Estes filmes são alegorias de encontros em que um enxerga em outro corpo algo de seu passado mais longínquo vivido com a mãe. Está formada a mistura arrebatadora de estranho/familiar que poderá levar ao apaixonamento visceral, semelhante àquele que cada um teve com a respectiva mãe. Este tipo de amor pode ser uma benção quando o casal ultrapassa a idéia de encaixe exato aceitando as imperfeições, individualidades e diferenças; ou uma maldição quando acontece a impossibilidade de renunciar à perfeição vivida nos primeiros tempos da relação.
            
                                                                           Nahman Armony
Primeira publicação na Revista CARAS


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