WINNICOTT E A CRIATIVIDADE
A palavra criatividade, que até então
dormia tranquilamente sua letargia secular, sofre um estremecimento eletroquimiomagnético
quando Winnicott a sacode enxotando-a para um novo caminho paradigmático. Tento
acompanhá-la nesta jornada, mas logo me confundo.
Vendo meu desespero, Winnicott toma-me
carinhosamente pelas mãos e me encaminha para a remota infância com a promessa
de que, findo o processo de entendimento e assimilação saberei distinguir os
dois significados de criatividade.
Winnicott nos fala de uma criatividade
primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura,
ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação
física vem acompanhada de uma atávica intuição de que existe um Acontecimento capaz
de aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada
vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada se repetem.
Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto
que vai se delineando, a princípio não tem existência própria. É criação/extensão
do bebê. Este ainda não tem noção de eu e outro. Na medida em que o fenômeno
seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir
o eu do não-eu. O cenário está pronto para o lento caminhar em direção ao
objeto transicional/espaço potencial. O objeto que era um objeto inerte, sem
significado – um paninho pendurado no berço – é sequestrado pelo bebê e levado
ao rosto onde, em um espaço potencial adquire o status de objeto transicional,
um objeto que é ao mesmo tempo lenço e mãe, interno e externo, um objeto
precioso, protetor, confortante só deixado no limbo e, portanto só guardado pelo esquecimento, com o passar da
infância. Pois bem, enquanto o objeto é só subjetivo, isto é, quando não há
distinção entre eu e não-eu a criatividade seria chamada de primária. Uma
criatividade que perdura por traz e por entre fenômenos (objetos) já impregnados
de externalidade.
Recapitulando: de inicio temos apenas
sensações, em um cenário exclusivamente subjetivo. Sobre a sensação aplica-se
aquilo que Winnicott chamou de “elaboração imaginativa de função” através da
qual um mundo de fantasia abre-se para o bebê. O passo seguinte acontece quando
a mãe ‘falha’, provocando uma desilusão no bebê, com a ameaça da perda de uma
‘continuidade de ser’. Cria-se um gap na comunicação mãe-bebê, da qual o bebê
se defende através da formação de pelo menos duas invenções: 1- a criação da mente intelectual e 2- a criação do objeto
transicional/espaço potencial.
Cria-se um ‘gap’ na relação mãe-bebê do
qual o bebê se recupera criativamente através de 1- formação de uma mente
intelectual e 2- através das formações transicionais ---- objeto
transicional/espaço potencial.
Como acima eu estava dizendo, a dor da
fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece aquela sensação
vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o
seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a
partir da função digestiva”. A sensação vaga permite uma elaboração imaginativa
de função. O Acontecimento SEIO agora apresenta uma dupla face: ele é
subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Este pequeno ser humano
deve agora, ao mesmo tempo, aprender a conviver com o paradoxo e a distinguir o
objetivo do subjetivo. Acrescenta-se, pois à elaboração imaginativa um reforço
dado pelo reiterado reaparecimento do objeto objetivo seio. Este constante
reaparecimento não impede que o mundo de fantasia continue a existir assim como
continua a funcionar a elaboração imaginativa de função. Ao lado da elaboração
imaginativa de função ou com ela misturado continua processando-se uma tomada
de conhecimento objetivo do mundo exterior. Como o seio continua investido de
fantasias, o objeto objetivo seio agora é subjetivamente concebido e também objetivamente
percebido. Embaralham-se o subjetivo e objetivo sem deixarem de realizar suas
funções.
Outro aspecto da criatividade tem sua origem
no espaço transicional. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o
mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo
lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Ele experiencia o mundo e o mundo o experiencia.
Ele é o mundo e o mundo é ele. Esta sensação/acontecimento tem seu precursor na
dependência absoluta do bebê. Esse conjunto é a experiência de onipotência do
bebê. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade,
de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade
externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de
subjetividade. Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente
imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetividade
torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência
do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.
A criatividade depende de uma mãe
suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que
permita o bebê aceder ao espaço potencial. O holding é uma nova maneira de ver
e viver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever,
imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o
espaço transicional, o verdadeiro self.
O viver criativamente tem a ver com a
força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto
ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital
dão existência ao viver criativo. O viver criativo guarda a convicção de
primeira possessão; daí o seu forte sentimento de pertencimento ao Universo.
Sua origem está na experiência onipotente vivida pelo bebê; essa origem permite
encontrar poesia e arte nas coisas mais simples existentes no Universo. Estou
agora falando da capacidade de envolver o objeto objetivo e penetrá-lo de
subjetividade. Isso fica bem exposto no filme Paterson onde um simples objeto
inanimado é vivido intensamente em inúmeras dimensões, ganhando uma aura de pura poesia.
Interessa especular se criatividade
deve ganhar o qualificativo de primário?
Talvez a palavra ‘primário’ tenha a
função de acentuar a importante contribuição do bebê existente em todo ato de
criativo.
Nahman Armony
Fantástico Dr Nahman,Que explicação brilhante,Por favor permita -me compartilhar com meus amigos e colegas. Um Especial Abraço..Arturo
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