A palavra técnica é usada -- embora cada
vez menos -- para dar conta dos procedimentos a serem realizados na sessão
analítica. Com a evolução da psicanálise a palavra ‘técnica’ passou a incomodar
por dar a ideia de uma utilização mecânica de preceitos, retirando o que é
fundamental para uma relação analítica: a arte do relacionamento, a
sensibilidade amorosa, cujos paradigmas são encontrados no conceito
winnicottiano de ‘preocupação materna primária’. Procurou-se atenuar este incômodo
adjetivando-se a técnica: passamos a falar de ‘técnica expressiva’. Esta foi
uma maneira que alguns psicanalistas encontraram para evitar usar a palavra
‘arte’ pois esta retiraria a cientificidade da psicanálise. No dicionário de
filosofia de José Ferrater Mora a palavra ‘expressão’ é usada em três
contextos: na filosofia, na semiótica e lógica e na estética. Foi esta última
que me interessou. Citação: “Discutiu-se muitas vezes qual a relação entre
conteúdo estético e sua expressão. Esta expressão tem sido às vezes
identificada com a forma. Porém, como a forma tem um caráter universal,
objetou-se que em tal caso há que identificar a expressão como um conjunto de
norma ou regras de caráter objetivo. Em suma, a expressão seria simplesmente a
imitação. Para evitar esta objetivação da expressão, disse-se que a expressão é
sempre e em todos os casos, de índole subjetiva; dependendo da experiência
estética e de suas numerosas variações.” O verbete técnica revela o seguinte: “Os
gregos usavam o termo ‘téchne’ (com frequência traduzido por ‘ars’, ‘arte’ que
é a raiz etimológica de ‘técnica’) para designar uma habilidade mediante a qual”
se faz algo”... “Em geral ‘téchne’ é toda uma séria de regras por meio das
quais se consegue algo.” Há que chamar a atenção para o seguinte: na primeira
proposição, onde a ênfase é colocada na habilidade produtiva, ars e téchne,
arte e técnica ficam confundidas; é quando a palavra ‘técnica’ (e aí estamos na
segunda proposição) passa a privilegiar , não a habilidade, nem o produto desta
habilidade, mas o conjunto de regras a ser seguido, é então que a arte e
técnica se diferenciam. Repare-se o paralelismo entre técnica e o uso da
objetividade e arte e expressão subjetiva.
Neste ponto várias perguntas me ocorrem.
Como se chegou a tal conjunto de regras? Como se faz uso delas? Uso
intelectual? Se eu seguir estas regras ainda estarei no campo da arte? Ou minha
atuação passará a ser robótica, despida de vida, força, intensidade, convicção?
O compósito ‘técnicas expressivas’ põe
em relevo este paradoxo e nos estimula a pensar esta contradição. Expressão é
um termo no qual está embutida a ideia de espontaneidade. Técnica é uma palavra
que carrega a ideia de algo laboriosamente aprendido. Como realizar a
conciliação entre técnica e expressão? Se caricaturarmos o analista clássico do
século passado teremos uma figura imponente, pomposa, com algumas
estereotipias: uma delas é começar a comunicação com as palavras ‘você está-me
dizendo que...’; outra é a permanente referência à transferência; outra ainda é
fazer jogos de palavras, etc. Este analista aceita --- e mesmo, estimula --- ficar
colocado na posição de um Ser onipotente que tudo sabe e tudo pode mesmo quando
se declara não sabendo e não podendo. A fala deste analista será estereotipada
e, portanto, não expressiva; será uma palavra intelectual que em nome de uma
técnica ficará despida de emoção. Felizmente estamos nos distanciando destes
tempos e o analista hoje fala como gente. Usa uma palavra expressiva, como
costuma ser expressiva a palavra na comunicação leiga. A expressão deverá ser parte inerente da comunicação terapêutica. Sabemos que existe uma
comunicação simbólica e uma comunicação expressiva. A comunicação puramente
simbólica é pobre. Faz dormir. Não convence. Não motiva. Se eu lesse esse
trabalho monocordicamente estaria realizando uma comunicação puramente
simbólica. Mas vocês estariam entediados, talvez sonolentos, quem sabe dormindo.
É preciso que a palavra carregue a vida do analista dentro dela. Esta pulsação
básica só ocorre quando o cliente é importante para o terapeuta e vice-versa.
Como diz Winnicott, quando existe uma relação de mutualidade. Cria-se então um
campo afetivo-emocional-empático-identificatório; a emoção do cliente lhe é
devolvida pelo terapeuta na expressividade da palavra e do comportamento. Ele,
cliente, sente-se então amado, existente, tendo um lugar no
coração do analista e no coração do mundo. A expressividade é a música do
analista: está nas variações melódicas e rítmicas das palavras e na
expressividade do corpo e dos movimentos. O analista canta: conta e canta. E o conto do analista só adquire força se for um conto cantado. Não se trata de um
jogo de palavras. A música da frase é talvez ainda mais importante que o seu
significado. Lembro-me de um colega, pesquisador inveterado, falando as maiores
barbaridades para um clientinho de seis anos em tom carinhoso, e obtendo uma
resposta, não à letra, mas à música de sua comunicação. É compreensível que
assim seja. A voz é um dos mais expressivos instrumentos musicais existentes. A música, sem
dúvida, é um desdobramento da voz. Encontramos na fala os elementos essenciais
da arte musical: ritmo, melodia, fraseado, andamento, movimento agógico,
expressividade, etc. A música da voz é anterior à fala e esta apenas acrescenta
uma significação simbólica a esta música. É claro que para o adulto,
diferentemente do exemplo que dei, é importante uma coerência entre significação
simbólica e a expressão afetiva. Porém a significação simbólica só entrará no
psiquismo do outro se for mediada por uma expressão musical apropriada. É esta
expressividade que faculta as transformações. Como adquiri-la? Como
aperfeiçoá-la? Sem dúvida, a expressividade é aprendida no calor das primeiras
relações. Cabe ao homem e ao terapeuta mantê-la viva e atuante, permitindo-se
ser sensível sempre à comunicação verbal e não-verbal do outro. Novas formas de
expressão podem ser adquiridas expondo-se a homem e o terapeuta a situações
inéditas. Nestes últimos dez anos, participei de alguns laboratórios que
permitiram incorporar ao meu repertório pessoal, outras formas de expressão.
Mais que técnico, foi um aprendizado vivencial. Nesta perspectiva, a expressividade
é apreendida e aprendida através da experiência. É a ação de colocar em jogo a expressividade num estado de receptividade que a aperfeiçoa. Trata-se muito mais
de poder estar sensível, em um estado de identificação, empatia e comunhão do
que buscar nos arquivos a conduta adequada.
Toda essa fala
anterior leva-nos à questão da espontaneidade; é uma questão complicada. Posso
esperar que surja espontaneamente em mim a ação mais adequada para aquele
momento terapêutico? Aperfeiçoando a pergunta: se eu estiver em estado de
sensibilidade, em contato com meus sentimentos, medos, desejo e fantasias, se
eu estiver ligado às manifestações transferenciais e contratransferenciais, se
eu estiver num estado de empatia e identificação, então aparecerá espontaneamente
a melhor conduta terapêutica? Ou haverá ocasiões em que terei de me por em
estado de reflexão para encontrar o melhor caminho? Neste momento estarei
fazendo uma escolha técnica? Será igualmente efetiva para a terapia, tanto um
fluir artístico-espontâneo quanto uma escolha técnica? Ou haverá momentos
próprios para cada uma dessas condutas?
Um conceito que poderá
nos ajudar nesta busca é o de espaço potencial e área transicional de
Winnicott; isso se considerarmos a técnica como o polo objetivo do espaço
transicional e a arte como o polo subjetivo. Mas não estou querendo expor verdades. Estou colocando questões com o pensamento voltado para a
multiplicação de nossos pontos de referência, o que, em minha opinião, permite
uma maior riqueza vivencial e reflexiva e, portanto, uma compreensão mais ampla
e diferenciada do universo humano. Cada um poderá pensar nestas questões de
acordo com a própria cabeça e personalidade, encontrando assim caminhos que lhe
serão próprios, acoplados às suas idiossincrasias. Por isto mesmo não estou
buscando resolver as contradições que surgem no texto; não estou tentando
trazer para uma convergência os vários feixes de ideias. Ao contrário, percebo
que estes feixes podem se entrecruzar das mais variadas maneiras, que por vezes
podem correr paralelos e que enfim, o caleidoscópio se formará à imagem e
semelhança de cada um.
Falemos, pois, outra
vez de técnica e expressividade, agora numa nova perspectiva. Pensemos num
pianista que aprende laboriosamente uma técnica, e que, enquanto a está
aprendendo não pode expandir-se, não pode colocar toda a sua expressividade na
interpretação. Porém, no momento em que a técnica se transformar em uma segunda
natureza, então sim, poderá deixar fluir toda a sua emoção. A técnica deixou de
ser uma preocupação e transformou-se em forma de expressão. Não forma inata,
mas aprendida e assimilada a um ponto que o inato e o adquirido não se
distinguem. O inato, como ficou dito anteriormente, pode ser aperfeiçoado; a
maneira condizente com tal aperfeiçoamento é a experiência viva, flexível e
aberta à modificação. Pode, porém, ser aperfeiçoado por um aprendizado
propriamente técnico (conjunto de regras). Este, porém se articula melhor com o
não-inato. Neste caso a técnica será aprendida mediante um esforço disciplinado
e enquanto estiver sendo aprendida interferirá com a espontaneidade e a arte do
terapeuta. Porém, uma vez transformada em segunda natureza, dotará o analista
de mais recursos tornando-o mais capaz de lidar com as variadas situações que
se apresentam.
Deixei alguns fios soltos, algumas
possibilidades em aberto. Por exemplo, não examinei a possibilidade de articular
técnica e arte ao falso self e verdadeiro self. Dentro do espírito de mestre
Winnicott e usando a terminologia de Umberto Eco, deixo este artigo como obra
aberta a ser processada pela subjetividade pessoal de quem o lê. Espero que
cada um selecione os “seus” fios e os disponha e desenvolva à sua maneira.
Espero ter podido transmitir, não propriamente algo original, mas a originalidade
de minha singularidade, que é o que nos permite enriquecermo-nos
mutuamente.
Nahman
Armony
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