Os pensadores da atualidade
chamam a atenção para uma mudança fundamental na mentalidade humana. No
passado, acreditava-se em princípios universais que, mesmo transgredidos, eram
aceitos por todos em uma cultura. A pessoa, ao transgredir, sabia estar indo de
encontro à Verdade de seu grupo.
Hoje temos uma dispersão da
Verdade. Cada um constrói a sua ética e tenta agir de acordo com ela. A
elaboração dessa ética varia de pessoa para pessoa. Nela, misturam-se mandatos
advindos da educação, da realização dos desejos próprios e de um cuidado com os
outros, seja por amor ou por convicção filosófica. Não estou falando de
elaboração consciente, que pode existir, ou se manifestar em algum momento, mas
de uma forma não-consciente de agir.
Muitas vezes a ética explícita
não é a mesma do inconsciente, o que provoca mal-estar e sentimento de culpa em
determinadas situações. Por exemplo: a ética de uma pessoa lhe diz que a
infidelidade não é um ato reprovável e, no entanto, ela se sente culpada quando
acontece. Vamos pensar em um caso concreto: um jovem adulto, criado em ambiente
religioso e repressor, apresenta dificuldades sexuais, as quais o desvalorizam
e revoltam. Ele se rebela contra a educação recebida e elabora uma ética
própria, em que a sexualidade é um direito de todos. Algo importante está
acontecendo. O rapaz desafia, a partir de seus instintos e desejos, a força dos
mandatos parentais que, à sua revelia, se tornaram parte dele mesmo. E sua
elaboração ética vai além. Para ele, é possível haver infidelidade na relação
amorosa, pois esta não deve impedir que um desejo sexual de grande intensidade
seja realizado. Sua ética está no respeito ao impulso. Pode-se pensar que este
fragmento ético tem sua origem afetiva no desejo de experimentação e variedade
(não quero repetir o argumento biológico darwiniano da máxima transmissão dos
caracteres hereditários).
Pois bem, esta é a ética que ele
apresenta à namorada: ambos teriam o direito a aventuras sexuais. Talvez peça a
ela discrição, pois se vier a saber da infidelidade sofrerá. A moça, porém, tem
outra ética. Para ela a fidelidade sexual é um princípio cuja quebra é inaceitável.
Se o namorado tiver uma aventura, terminará o namoro. Temos aqui duas éticas em
confronto, o que não acontecia no tempo em que havia apenas uma Verdade: para o
rapaz o ético é não impedir a realização de um forte impulso; para a moça o
ético é preservar a fidelidade a qualquer custo. Uma diferença de ajuizamento e
um impasse.
O mais coerente seria terminarem
o namoro antes que um aprofundamento da relação viesse a fazê-los sofrer na
eventualidade de uma traição. Acontece que os dois se amam. Um deles irá ceder.
Mas será uma frágil renúncia. Ou ela se sentirá ofendida se houver infidelidade
ou ele se sentirá cerceado por não poder se entregar a um desejo intenso que
surja. A situação poderá dar origem à dubiedade. Mantendo-se fiel a sua ética,
à qual não pode renunciar já que se trata de um princípio básico, ele “sabe”
que em situações excepcionais cederá ao desejo. Mas como está muito interessado
na namorada, não deixa claros, nem para si nem para ela, os seus sentimentos.
Ela aceita esse estado ambíguo porque não quer um rompimento. Ambos concordam
em manter uma semi-mentira e uma semi-verdade. Está criado o cenário para muito
sofrimento futuro.
Nahman Armony
Primeira
publicação na revista CARAS
Muito bom, Nahman. Muito bem formulado, e muito bem explicado. Esse dilema existe mesmo em muitas pessoas, e a meu ver ele é um avanço sobre a "verdade única". Do modo como eu o entendo, a "verdade única" é uma "mentira única", e as obrigações do passado fizeram muito bem em se retrair para deixar o espaço para as decisões pessoais. A fidelidade tem a ver ou com repressão (de impulsos primitivos), ou com integração desses impulsos numa personalidade mais madura. Talvez o casal da história não sofra tanto quando o tempo fizer o rapaz se integrar mais, e a moça se sentir mais livre. É o que desejo a eles. Grande abraço.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Concordo com você Davy. O que você escreveu é belo fecho para minha crônica. Um grande abraço. Nahman.
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