Palestra realizada na Universidade Estácio de Sá
Será preciso abordar vários aspectos da
vida pósmoderna para tentarmos entender algo do sofrimento humano dos tempos
que correm..
Numa primeira aproximação, ainda a
longa distância (câmera panorâmica), distingue-se, no social, o avanço de uma
organização permissiva ocupando o lugar da organização repressiva. Isto não
significa o desaparecimento da repressão do mapa da psicologia humana, mas sim
uma modificação em seu modus faciendi e em seu status teórico.
Na organização repressiva a
subjetividade corre pelas vias da ordem, da conformidade, da obediência às leis
e regras, do equilíbrio, da firmeza, da harmonia, da constância, do progresso
lento e seguro, da boa educação. Espera-se que o homem se adapte às regras
sociais e seja um bom cidadão cumpridor de seus deveres. Deve ser ponderado,
emocionalmente estável, previsível. Essas características estão sob a égide da
repressão. O homem reprime seus desejos, sua espontaneidade para se conformar ao
que é esperado dele. A repressão conduz ao recalque, à formação de um superego
severo e à culpa. O homem moderno, como diz Kohut, é um homem culpado.
Corresponde ao homem-camelo de Nietzsche, aquele que tem de carregar quilos de
culpa nas suas costas. É o homem do mito judaico, da culpa primordial de Adão e
Eva, do mito do pecado original. Na modernidade a cultura já nos declara
culpados na origem, pois sabe muito bem que seremos educados dentro do
parâmetro repressivo. Temos de recalcar nossos desejos, nossa espontaneidade,
nossa criatividade. Estabelece-se um conflito entre espontaneidade e repressão,
entre desejo e recalque e isto nos causa sofrimento.
O sofrimento da subjetividade
pós-moderna é de outra estirpe: a permissividade, o gozo, a desmedida ocupam o
lugar da repressão e o ser humano sente qualquer obstáculo à realização de seus
desejos como absurdo, antinatural. Como estes obstáculos inevitavelmente acabam
por aparecer surge um sofrimento cuja manutenção se deve à dificuldade de
renúncia ao desejo. Um sentimento de injustiça domina a pessoa, que pode
tornar-se raivosa, rancorosa, apática, deprimida. Ou pode enveredar pela
transgressão às leis.
Na organização pós-moderna há um excesso
de oferta de objetos para consumo. Diante da variedade o indivíduo hesita,
querendo se apossar de todos ou dos melhores objetos. A ansiedade de escolha e
a impossibilidade de experimentar e possuir todos os objetos provoca dispersão
e ansiedade.
Ainda estamos numa transição entre a
sociedade moderna e pós-moderna. A moderna aponta para a estabilidade e
segurança e a pós-moderna para o risco e a aventura. A instabilidade e
insegurança da sociedade pós-moderna acrescentam um sofrimento extra para as
pessoas que vivenciaram como natural a relativa segurança existente no regime
da modernidade. Essas pessoas, ainda nostálgicas da organização moderna da
sociedade, não aceitam as incertezas, a insegurança e a inconstância da
atualidade. Este é um motivo para um plus aequo de mal-estar das
pessoas.
O papel exercido pela mãe na atualidade
tem a sua quota de contribuição para o mal-estar da pós-modernidade. Recrutada
pela organização econômica e social, tem um acréscimo significativo de
responsabilidade e de trabalho. Lançando-se no mundo profissional já não pode
dar a mesma atenção ao filho, não só em termos de tempo como também em termos
de dedicação. Estou querendo dizer que as preocupações referentes ao trabalho e
à sobrevivência ocupam parte dos pensamentos e afetos da mãe que então não pode
direcioná-los integralmente para o seu bebê; a preocupação materna primária não
pode ser exercida em sua plenitude e a identificação primária cujo corolário é
a identidade primária, fica prejudicada. O ser humano perde a oportunidade de
sentir-se plenamente real, sólido, denso. Resulta um sentimento de
inconsistência maior ou menor que provoca ansiedade, medo de aniquilamento,
insegurança, propensão ao pânico. Defesas várias são erguidas para barrar a
invasão destes sentimentos. Além de certas formas de psicose (autismo,
esquizofrenia simples, esquizofrenia hebefrênica), deparamo-nos com a
arrogância, a drogadicção, a onipotência obstinada e inflexível, o fanatismo, a
violência, a depressão apática. Como se observa não são processos de defesa
elaborados, mas defesas primitivas e brutas.
A insuficiente identificação com a mãe
faz com que a procura por figuras de identificação torne-se compulsiva. O
indivíduo sente necessidade de encontrar uma personificação materna para
receber o acolhimento que não obteve na infância. Encontrada a pessoa que
encarne essa Mãe Primeva, a ela são dirigidas demandas excessivas que acabam
por tumultuar a relação, tornando-a freqüentemente inviável. Rompida a relação
podem surgir a depressão e a violência. Estou aqui me referindo especialmente
às situações borderlines que podem ser remetidas a dificuldades na fase de
separação-individuação. Nessa fase, a criança experimenta se desprender da mãe,
mantendo aberto o caminho de volta, de tal forma que possa a qualquer momento
regressar à dependência. Se a mãe não acompanha os movimentos de vai e vem de
seu filho, retendo-o no momento em que quer se aventurar no mundo, e não o
acolhendo de volta quando da busca de um reabastecimento afetivo, a criança
torna-se confusa, não podendo realizar uma identificação adequada com a
mãe.
Muitas vezes a identificação com o pai
compensa, até certo ponto, a falha na identificação com a mãe. O indivíduo que
não pôde formar referências internas guia-se pelas referências externas
fornecidas pela função pai. A conseqüência é uma rigidez superegóica, com
propensão ao fanatismo, à convicção de possuir a verdade e coisas deste jaez. O
fato porém é que na atualidade pouco acontecem estas identificações, pois o pai
está perdido em um cipoal de valores morais desconexos e em um emaranhado de
contraditórias prescrições e proscrições de comportamento. O pai apresenta-se
inseguro, indeciso, fragilizado, uma personificação insuficiente se o
compararmos com a figura forte de Pai da modernidade. As valências
identificatórias da criança que cresce e se torna um adulto permanecem abertas,
provocando ou ansiedade, ou violência, ou relações compulsivas tumultuadas e/ou
de curta duração. Existe, porém uma possibilidade de bem utilizar estas
valências em aberto. É permanecer em estado de criação contínua,
identificando-se incessante e porosamente com este nosso mundo em permanente de
mutação. O que poderia ser uma desvantagem transforma-se em vantagem.
As idéias de permissividade e de gozo
ilimitado são insuficientes para a caracterização da pós-modernidade, pois nela
também encontramos injunções. Estou pensando especialmente nos mandatos de não
reprimir e de gozar a vida.
Tenho um analisando adolescente que me
diz explicitamente não querer conter sua raiva. Embora tenha capacidade de
autocontrole, não a exerce, pois está impregnado pela cultura da
permissividade. Claramente, ele segue um mandato da sociedade atual. Ao não se
reprimir, não só criava freqüentes situações de agudo conflito como também não
conseguia usar o processo psíquico de distanciamento para apreciação de uma
situação. Desta maneira ele enfiava os pés pelas mãos e seus empreendimentos
dificilmente obtinham êxito. Também curtir e consumir são prescrições da
pós-modernidade que se não cumpridas dão a sensação de desperdício de vida e se
cumpridas a qualquer preço levam à negação e rejeição da dor e das limitações
humanas com suas conseqüências psicossomáticas.
Já existe um certo consenso sobre patologias
da pós-modernidade. Fala-se de depressão, pânico, narcisismo, borderline, transtornos
psicossomáticos, adicção, etc. Estes quadros não são exclusivos da
pós-modernidade, pois podem ser encontrados já nas primeiras décadas da
psicanálise. Naquela época eram chamados de “casos difíceis” e encaminhados
para psicanalistas que por sua sensibilidade não usavam as técnicas ortodoxas e
que, paradoxalmente, eram desvalorizados como psicanalistas. É o caso de
Ferenczi que chegou a ser diagnosticado como psicótico por Ernest Jones. Esses
“casos difíceis” são muito mais freqüentes na atualidade. Além disso, o olhar
mais apurado da atualidade, descobre características psicóides em pacientes
diagnosticados no passado como neuróticos. Muitos analistas nos ajudaram a ter
esse olhar mais aguçado. Winnicott foi um deles. Seus conceitos de verdadeiro e
falso self nos colocam atentos à possibilidade de existir por trás de um
comportamento normal/neurótico, elementos psicóides.
Uma pitada de neurociência
Da era paleolítica aos nossos dias, com variações para
mais e para menos, o homem conheceu uma segurança cada vez maior. No
paleolítico, diante dos perigos que os acossavam, os homens tiveram de
desenvolver e preservar uma quantidade adequada dos chamados neurônios de
risco, pertencentes a circuitos dopaminérgicos e que os levavam a procurar e
enfrentar situações de risco, atitude necessária à sobrevivência. Na medida em
que a espécie humana, com sua inventividade, foi reduzindo os riscos do viver,
esses neurônios sofreram um declínio. Já no século XVII Descartes acreditava
que o desenvolvimento das ciências e da filosofia levariam a humanidade a uma
época de ouro, a um paraíso idílico onde haveria um controle de todas as
condições de vida. No século XIX e em parte do século XX esse ideal parecia
estar-se realizando; a humanidade civilizada acreditou estar vivendo em
condições de segurança e controle crescentes; o acaso parecia estar perdendo
terreno na composição dos acontecimentos. Sorrateiramente, porém, de dentro da
própria modernidade, a instabilidade, a insegurança, a incerteza, as ameaças à
sobrevivência psicológica e física foram crescendo. Mas já agora os homens não
mais estavam equipados com um número suficiente de neurônios de risco para
enfrentar as transformações sócio-econômico-culturais. Um enorme esforço de
adaptação é exigido do homem da atualidade. A invenção dos esportes radicais
pode ser uma tentativa de estimular o desenvolvimento dos diminuídos neurônios
de risco. O descompasso psicofisiológico manifesta-se em diversas reações:
somatização, adicção, anomia, pânico, estranhamento, desorientação, confusão,
estresse, ansiedade, depressão, apatia, etc. O homem se revolta contra
imposições do destino que contrariam expectativas de segurança, e se deprime
diante de um sentimento de incapacidade de enfrentar novos desafios. A
adaptação é difícil e sofrida. Também as novas condições masculina e feminina
obrigam a uma adaptação que cobra sua parcela de sofrimento.
Tentei delinear um panorama geral do sofrimento humano
na pós-modernidade valendo-me de algumas correntes do pensamento contemporâneo.
Obrigado pela atenção.
Nahman Armony
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